quinta-feira, 17 de maio de 2012
a temperatura do corpo #15
«Primeiro ele é uma coisa estranha esquisita, a gente põe-se a descobri-lo peça a peça com estupefacção. Os pés, as mãos, a caca - que coisa. E o chichi e o instrumento de o produzir. E os ruídos nem sempre com propósito mas perfeitamente legítimos, se o contexto está de acordo. Depois há a organização de todas as suas peças para uma harmonia do conjunto, umas mudam-se, outras crescem ou diminuem, é assim. Um corpo. É a altura de nos revermos nele, querida, cheios de glorificação interior. A gente saúda-o como quem bate uma palmada no pescoço de um cavalo e parte com ele para a vida. E então, é curioso, então ele não existe. Então quem existe é o mundo e nós, para o mundo existir. De nós à vida há um vidro muito puro, muito límpido e o corpo é o vidro. Vai levar tempo que ele rache e crie lixo para existir, mas por enquanto não. Por enquanto é só a necessidade e a evidência de existir como os deuses e as pedras, antes de as racharem para calcetarem as ruas. Por enquanto há o milagre sem milagre nenhum. Por enquanto há a eternidade de um relógio sem ponteiros.»
Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990
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