domingo, 31 de março de 2013

sábado, 30 de março de 2013

interpretose now #4


«O que se desenha no horizonte? – Um século das horas extraordinárias, da dúvida, da fuga massiva. Mas não vale a pena lamentar-se e é indecoroso baixar a cabeça. O dever de ser feliz é mais válido do que nunca em tempos como os nossos. O verdadeiro realismo da espécie consiste em não esperar menos da inteligência do que se exige dela.»

Peter Sloterdijk, "O Estranhamento do Mundo", Relógio D’Água, 1993

sexta-feira, 29 de março de 2013

Toda a humilhação leva à morte #20


«A felicidade é uma característica da vida que exige o desaparecimento da vida para existir. Se a felicidade é uma qualidade global do homem, então é necessário esperar que a vida desse homem se cumpra com a morte.»

Roberto Calasso, "As Núpcias de Cadmo e Harmonia", Cotovia, 1998

quarta-feira, 27 de março de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #10



«Feliz aquele que do mundo vão
Sem ódio deixa a luta,
E aperta um amigo ao coração
E com ele desfruta
O que, sem que o homem sequer saiba
Ou nisso atente,
Através do labirinto da alma
Erra à noite, silente.» 

J. W. Goethe, "Poemas. Antologia", Centelha Editora, 1986

Teoria da Conspiração #43 (ou o Absorvente Convite dos Impulsos)


«Seria contrário à natureza conservadora das pulsões se o objectivo da vida fosse um estado que nunca tivesse sido alcançado antes. Tem de ser um estado anterior inicial que o vivente deixou uma vez e ao qual aspira a regressar acima de todos os desvios da evolução. Se pudéssemos supor, como experiência sem excepção, que todo o vivente morre por motivos internos, poderíamos, então, dizer: O objectivo de toda a vida é a morte, e indo mais atrás: o inanimado foi anterior ao animado.»

Sigmund Freud, "Para Além do Princípio do Prazer", Relógio D'Água, 2009

segunda-feira, 25 de março de 2013

ninguém é filho das ervas #16


«Pertence aos últimos segredos do homem e da vida de livre mobilidade em geral que o nascimento do eu e do medo do mundo sejam um e o mesmo.» 
Oswald Spengler

domingo, 24 de março de 2013

Imediatamente embora pouco a pouco #29


«Em mim é muito forte a disposição para não me sentir no meu lugar. Sempre foi para mim uma experiência especialmente agradável o não estar onde estivesse. Quando viajo, logo o gosto antecipado de partir daqui me faz feliz. Isto é, evidentemente, um trauma infantil pela falta de desejo de vir ao mundo. O mundo no qual nasci e a figura com a qual vim ao mundo deixam-me profundamente insatisfeito. Não gosto do meu aspecto e não me identifico com ele. Ainda me lembro que, quando vi pela primeira vez a minha imagem ao espelho, gemi literalmente de dor: não podia conceber que eu era esse. Esse é o desejo de sair do meu corpo, das minhas coisas, da minha casa... 
Não me sinto em casa em lado nenhum, sinto-me sempre em estado de trânsito. De um homem assim costumava dizer-se: ele não está bem em nenhum lado.»

Ilya Kabakov em conversa com Boris Groys

sábado, 23 de março de 2013

o Mal-estar da Civilização #36


«Também eu, excelente homem, tendo familiares; pois que, como diz Homero, não nasci nem dum carvalho, nem dum rochedo, mas de seres humanos.»

Platão, "Diálogos III - Apologia de Sócrates", Pub. Europa-América, 2ª Edição

sexta-feira, 22 de março de 2013

o poeta sabe menos que o poema #1

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Herberto Helder, "Ou o Poema Contínuo", Assírio & Alvim, 2001

quinta-feira, 21 de março de 2013

quarta-feira, 20 de março de 2013

K, o elemento estranho da tabela literária #6


«Não sou pontual, porque não sinto os sofrimentos da espera. Espero que nem um boi. Porque se eu sinto uma finalidade na minha existência actual, mesmo que seja muito incerta, sinto-me na minha fraqueza tão vaidoso que era capaz de aguentar tudo só para ter esta finalidade à minha frente. Mesmo se estivesse apaixonado, o que então não faria! Quanto tempo não esperei, há nos, debaixo das arcadas do Ring até M. passar, mesmo para a ver andar com o namorado. Tenho chegado atrasado a encontros em parte por descuido, em parte pela minha ignorância dos sofrimentos da espera, mas também em parte para obter novas e complicadas finalidades através de uma busca renovada e incerta da pessoa com quem tinha combinado o encontro, e assim conseguir a possibilidade de uma espera incerta e longa. Pelo facto de eu em criança ter um medo terrível de esperar por alguém, poderia concluir-se que estava destinado a qualquer coisa melhor e que previa o meu futuro.»


Franz Kafka, "Diários", Difel, 2001

terça-feira, 19 de março de 2013

Ela tem os teus olhos #7


«A tecnologia televisiva desencadeia respostas neurofisiológicas nos seus espectadores. Pode criar doenças e decerto gera confusão e submissão a um mundo externo de imagens. Em termos globais, os efeitos observados traduzem o condicionamento necessário ao controlo autocrático.» 

Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999

segunda-feira, 18 de março de 2013

espécie de oração particular #25


«Homem e mulher, de vós brota a nação que há de vir, o clarão das vossas massas na árdua labuta; a ordem competitiva volta-se contra si própria, as aristocracias veem-se suplantadas; e, no meio da paralisia geral de uma sociedade enlouquecida, a vontade confederada lança-se em frente e age.»

James Joyce, "Retrato do Artista Quando Jovem", Relógio D`Água, 2012

domingo, 17 de março de 2013

Retrato de Família #24


"Etty" H. Karamazov (1914-1943)

«gostava de viver longamente para no fim, mais tarde, conseguir explicar, e se isso não me for dado, pois bem, nesse caso uma outra pessoa irá fazê-lo e então um outro continuará a viver a minha vida, ali onde a minha foi interrompida, e por isso tenho de viver a minha vida tão bem e tão completa e convincentemente quanto possível até ao meu derradeiro suspiro, para que o que vem a seguir a mim não precise de começar de novo nem tenha as mesmas dificuldades.»

sexta-feira, 15 de março de 2013

Perguntas Abandonadas #27


«Que é do mar se os rios se recusam?»

Stig Dagerman (1923–1954) 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #9


«Quando conseguiu libertar-se daquele abraço, a náusea havia destruído nele toda a emoção. Não sentiu nenhuma necessidade de continuar a prédica iniciada e saiu, depois de ter feito uma carícia paternal e indulgente à rapariguinha,  que não queria deixar desgostosa.
Uma grande tristeza apoderou-se dele quando se viu sozinho na rua. Sentia que a carícia feita por complacência àquela garota marcava precisamente o fim da sua aventura. 
Ele próprio desconhecia que período importante da sua vida encerrara com essa carícia.
Durante muito tempo a sua aventura deixou-o desequilibrado, insatisfeito. Pela sua vida tinham passado o amor e a dor e, privado desses elementos, era agora dominado pela a mesma sensação de alguém a quem amputaram uma parte importante do corpo. Mas o vazio acabou por se encher. Voltou a nascer nele o gosto pela tranquilidade e pela segurança, e o cuidar de si próprio afastou dele quaisquer outros desejos.»

Ítalo Svevo, "Senilidade", Relógio D'Água, 1988

quarta-feira, 13 de março de 2013

Até hoje foi sempre futuro #5


Deus

«Não sei qual cabalista medieval disse que Deus ocupava todo o espaço; que depois se retirou de uma pequena porção do espaço. Então esse espaço começou a viver por conta própria e esse espaço é o universo, esse espaço somos nós, aqui. Isto é, Deus se distraiu um pouco de nós, não do todo, e somos esse sonho que está vivendo sua própria vida.»

Carlos R. Stortini, "Dicionário de Borges", Bertrand Brasil, 1990

segunda-feira, 11 de março de 2013

explicando melhor #5


- Estive a ler um pouco da biografia de Horacio Quiroga... que tristeza... - murmurou nAnonima.

- «As Parcas são, em Roma, as divindades do destino, identificadas com as Meras (Moirai) gregas, de cujos atributos se foram revestindo a pouco e pouco. Na sua origem, as Parcas parecem ter sido, na religião romana, os espíritos do nascimento. Mas este traço inicial cedo se desvaneceu, perante a atração das Meras. São representadas como fiandeiras, medindo a seu bel-prazer a vida dos homens. São, como as Meras, três irmãs: um preside ao nascimento, a outra ao casamento e a terceira à morte.» - leu em voz baixa o Irmão Karamazov.

domingo, 10 de março de 2013

A vida não é um sonho #28


«A sua lua-de-mel foi um longo arrepio. Loura, angelical e tímida, o duro carácter do seu marido gelou as suas sonhadas criancices de noiva. Ela amava-o muito, no entanto, por vezes sentia um ligeiro estremecimento quando, ao passear juntos, de noite, pela rua, deitava um olhar furtivo à elevada estatura de Jordán, mudo há mais de uma hora. Por sua parte, ele amava-a profundamente, sem lho dar a conhecer.»

Horacio Quiroga, "Contos de Amor, Loucura e Morte", Cavalo de Ferro, 2003

sábado, 9 de março de 2013

a temperatura do corpo #24


«Amar é ver diferente.
Depois fica-se cego.
Mas primeiro é ver diferente.»

Gonçalo M. Tavares, "Investigações. Novalis", Difel, 2002

sexta-feira, 8 de março de 2013

dedicatória #21*


* dedicada a todas as formas de sorrir.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Dicionário das causalidades #20


U

Um

«Quando um dos nossos filósofos atingiu uma idade em que sente a sua inteligência enfraquecer, e o gelo dos anos embotar os movimentos da sua alma, reúne os seus amigos num sumptuoso banquete; depois, tendo exposto os motivos que o levaram a resolver retirar-se da natureza, e a pouca esperança que tem de poder juntar algo mais às suas belas acções, é-lhe concedida a graça, ou seja, é-lhe prescrita a morte, ou é-lhe dada uma severa ordem de viver.» 

Cyrano de Bergerac, "O Outro Mundo Ou Os Estados e Impérios Da Lua", Editorial Estampa, 1990

quarta-feira, 6 de março de 2013

Orelhas de Elefante #35


Jéssica
          Nunca me deixa alegre a suave música.
Lourenço
É que tendes espíritos atentos. Vede como procede uma manada selvagem e impetuosa, ou alegre bando de potros não domados: loucos saltos dão sem parar, mugindo e relinchando como os leva a fazer o quente sangue. Mas se o som de um clarim, acaso, escutam, ou se lhes fere as ouças qualquer música, notareis como estacam de repente, expressão de doçura a refletir-se-lhes no olhar selvagem, pela doce força, tão-somente, da música. Por isso disse o poeta que Orfeu tinha o poder de atrair com seu canto as próprias pedras, as árvores e as ondas, visto como não há nada insensível, cruel e duro a que não possa a música, com o tempo, mudar a natureza. O homem que música em si mesmo não traz, nem se comove ante a harmonia de agradável toada, é inclinado a traições, tão-só, e a roubos, e a todo estratagema, de sentidos obtusos como a noite e sentimentos tão escuros quanto o Érebo. De um homem assim desconfiai sempre. Ouvi a música.
William Shakespeare, "O Mercador de Veneza (Acto V)"

terça-feira, 5 de março de 2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

interpretose now #3


«Acronia não significa estarem as épocas indiferentemente umas ao lado das outras, mas sim o elas estarem umas dentro das outras, segundo o modelo do tripé, como estruturas em fuga que se rejuvenescem. Podemos abri-las como um harmónio, e então é muito grande a distância de um extremo a outro, mas também podemos metê-las umas dentro das outras como as bonecas russas, e então as paredes do tempo ficam muito perto uma das outras. As pessoas de outros séculos ouvem a nossa grafonola roufenha, e nós vemos através das paredes do tempo como elas estendem as mãos para o apetitoso banquete.» 
Elisabeth Lenk

domingo, 3 de março de 2013

diário dos mesmos pesares #25


«Portanto declaro solenemente que, até ao fim dos meus dias, nada empreenderei para repetir a minha tristeza experiência de ascensão. Fico em baixo e a partir de baixo cuspirei para toda a vossa hierarquia social. Sim. Um cuspo a cada degrau. Para a subir é preciso ter trombas de judeu, não ter medo de nada, ser um maricas feito de aço da cabeça aos pés. E isso é que eu não sou.» 

Venedikt Erofeev, "De Moscovo a Petuchki - a Lucidez de um Alcoólico Genial", Cotovia, 1995

sábado, 2 de março de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #8


«Desejo de amor já é amor»

José Tolentino Mendonça, "Estado do Bosque", Assírio & Alvim, 2013

sexta-feira, 1 de março de 2013

Em nome do pai


©Kubrick, Stanley;1980