«Ainda não era o verdadeiro Homem, com dizia Klober, o Homem que quando se aproxima se aproxima para matar, mas havia já nele algo de muito significativo: qualquer aproximação a outra existência, não sendo ainda para a eliminar, era já, e desde há muito, para não amar. Posso aproximar-me com segurança, pensava Walser, naquele momento em que recordava de novo o beijo dado a Clairie, posso aproximar-me sem medo de qualquer pessoa porque sei que não a vou amar. Já estou preparado para não amar ninguém - e esta frase dita assim, para si próprio, era sentida como a sua grande arma em tempo de guerra, a grande defesa em relação à agressividade do século. Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não possuía qualquer inclinação para o amor ou para a amizade! E nesse momento, a caminhar em plena rua, desarmado, observando de cima os seus sapatos castanhos, velhos, sapatos irresponsáveis como troçava Klober, nesse momento Walser sentia-se tão seguro - e, ao mesmo tempo ameaçador - como se avançasse dentro de um tanque pela rua.»
Gonçalo M. Tavares, "A Máquina de Joseph Walser", Caminho, 2004