terça-feira, 30 de julho de 2013

domingo, 28 de julho de 2013

interpretose now #10
































«Pela noite, o homem acende uma luz para si ainda que os seus olhos estejam fechados. Mas vivo toca a morte, dormindo. Desperto, toca no adormecido.»

Heraclito

sábado, 27 de julho de 2013

a poesia não me interessa #44


Vai chegar a manhã.
A luz treme nos arbustos.
Algas, seixos, limos
guiam pelas fragas
a água sem fundura,
o ardor levantino do anil.

Ouves correr poalhas de bruma?
Silêncios do vento que renasce?

Seguro na mão que não seguras
uma lâmina de fogo, um erro
de árvores e olhas-me.

Pouso os lábios no teu pulso
para sentir o coração.
É tão perigoso ser feliz.

Joaquim Manuel Magalhães, "Uma Luz com um Toldo Vermelho", Presença, 1990

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Até hoje foi sempre futuro #9


«Caminhávamos à beira-rio e éramos imensos. Gostava de saber agora bem o que éramos. Tínhamos a verdade toda porque não queríamos mais nada. E tínhamos a beleza porque estávamos contentes, mas não sabíamos bem de quê. Era um momento excessivo em que talvez Deus aparecesse. Era um desses instantes em que tudo oscila e é de mais e só é plausível matarmo-nos. Não havia em nós humanidade bastante, era plausível.»

Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Recomposições de Metades #2


«Amo a regra que corrige a emoção. Amo a emoção que corrige a regra.»  

Georges Braque (1882-1963)

quarta-feira, 24 de julho de 2013

espécie de oração particular #31


«"Senhor, sem ti fico louco, e ainda mais louco contigo!" - Seria esse, na melhor das hipóteses, o resultado da reaproximação entre o falhado cá de baixo e o falhado lá de cima.»

E. M. Cioran, "Silogismos da Amargura", Letra Livre, 2009

terça-feira, 23 de julho de 2013

quero outra noite no fim do dia #18


«Assim nasceu a história do País das Maravilhas:
Assim, um por um, lentamente,
Se desfiaram seus estranhos eventos –
E agora a história acabou,
E remamos para casa alegremente
Debaixo do sol que baixou.

Alice! Uma história tão pueril!
E, como uma mão gentil,
Guardemo-la onde os sonhos de infância
Se enlaçam no coração da memória,
Como a murcha grinalda do viajante
Colhida numa terra distante.»

Lewis Carroll, "As Aventuras de Alice no País das Maravilhas", Relógio D'Água, 2007

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Ouvido no estrangeiro #3


L´enfance
Qui peut nous dire quand c’est fini
Qui peut nous dire quand ça commence
C´est rien avec de l´imprudence
C´est tout ce qui n´est pas écrit

L´enfance
Qui nous empêche de la vivre
De la revivre infiniment
De vivre à remonter le temps
De déchirer la fin du livre

L´enfance
Qui se dépose sur nos rides
Pour faire de nous de vieux enfants
Nous revoilà jeunes amants
Le cœur est plein, la tête est vide
L´enfance

Jacques Brel

sábado, 20 de julho de 2013

diário dos mesmos pesares #30


« - [O que tenho?] - disse ele - Nada de especial. Tenho... um décimo de segundo a mostrar que não está pelos ajustes... Espere... Há momentos em que o meu corpo se ilumina... É muito curioso. De repente fico-me visível... distingo o fundo das minhas camadas de carne, sinto zonas de dor, anéis, pólos, coroas de dor. Está a ver estas figuras vivas?, a geometria do meu sofrimento? Alguns destes relâmpagos parecem realmente ideias. Fazem compreender - daqui até ali... E no entanto deixam-me incerto. Incerto será a palavra... Quando isto está para vir, acho qualquer coisa de confuso ou difuso em mim. No meu ser formam-se lugares... enevoados, parecem lonjuras. Apanho na memória uma pergunta, uma questão qualquer... E meto-me nela a fundo. Conto grãos de areia... e, enquanto os vou vendo... - A dor crescente obriga-me a examiná-la. Penso nela! - Só espero pelo meu grito... e, mal o oiço - o objecto, o terrível objecto, faz-se pequeno, cada vez mais pequeno, furta-se à minha visão interior...» 
Paul Valery

Italo Calvino, "Seis Propostas para o Próximo Milénio", Editorial Teorema, 2007

sexta-feira, 19 de julho de 2013

prove que não é um robô #3


«O homem que está apaixonado encontra um búzio na margem. Quando o leva ao ouvido, não ouve o mar, nem o vento, nem os anjos, mas só a sua própria voz cantando: amo-te. Nunca ouvira nada tão belo.
Na outra margem, todos os homens dormem. Alguém caminha lentamente ao longo da praia, leva-os um a um ao ouvido, escuta. Nalguns desses búzios humanos ouve cães a ladrar, noutros tigres rugir na imensidão ou então martelos a ressoar, e noutros ainda crescer o crescer das máquinas. Mas num deles ouve ecoar o grito de um peixe. É o som que faz o homem que está apaixonado quando alguém o leva ao ouvido.
Se os planetas pudessem amar, deixariam a sua órbita e provocariam o caos. A salvação do mundo deve-se ao facto de o amor ser impossível. O homem que está apaixonado adivinha, também ele sabe, que o amor é gémeo da morte. Mas isso não o impede, a ele que é prisioneiro do seu destino, de entrar de rompante na cela do seu vizinho gritando de alegria: sou livre!
Stig Dagerman

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Não respire... (ou leituras em apneia) #9


«Coloquemos assim: um fenómeno espiritual – isto é, significativo – é “significativo” exactamente porque extrapola os seus próprios limites, e actua como expressão e símbolo de algo espiritualmente mais vasto e mais universal, todo um universo de sensações e ideias corporificadas no seu interior com maior ou menor felicidade – eis aí a medida do seu significado.» 

Thomas Mann, "A Montanha Mágica", Livros do Brasil, 1981

Pode respirar.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #15

   
     «Vivia só com os gatos, deixara de parte a vida com os outros seres humanos e, todas as noites, aquela senhora, antes de adormecer, metia no seu leito um livro, um objecto ou uma carta, para reencontrar, em seus sonhos, as coisas que amava. Um dia, sobre um dos travesseiros, poisou uma pena que um jovem amante lhe oferecera.
     E o rapaz sonhou que a matava.»

Tonino Guerra, "Histórias para uma Noite de Calmaria", Assírio & Alvim, 2002 

domingo, 14 de julho de 2013

ninguém é filho das ervas #21


Todo o homem é uma divindade disfarçada, um deus que se faz passar por louco.
Ralph Waldo Emerson

sábado, 13 de julho de 2013

Até hoje foi sempre futuro #8


«Nem todos os livros são tão insípidos como os seus leitores. É provável que haja palavras endereçadas exactamente à nossa condição, as quais, se de facto pudéssemos ouvi-las e entendê-las, seriam mais salutares às nossas vidas que a própria manhã ou a Primavera, revelando-nos talvez uma face inédita das coisas.
Quantos homens não inauguraram uma nova etapa na vida a partir da leitura de um livro! Deve existir para nós o livro capaz de explicar os nossos mistérios e de revelar outros insuspeitados. As coisas que ora nos parecem inexprimíveis, podemos encontrá-las expressas algures.
As mesmas questões que nos inquietam, intrigam e confundem, foram postas por sua vez a todos os homens sábios; nenhuma foi omitida, e cada um deles respondeu de acordo com a sua capacidade, por meio de palavras ou da própria vida. De mais a mais, juntamente com a sabedoria aprendemos a liberalidade.»

Henry David Thoreau, "Walden ou a Vida Nos Bosques", Antígona, 1999

sexta-feira, 12 de julho de 2013

o poeta sabe menos que o poema #6


«Deve haver, no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero.
A novidade, em si mesma, nada significa, se não houver nela uma relação com o que a precedeu. Nem, propriamente, há novidade sem que haja essa relação. Saibamos distinguir o novo do estranho, o que, conhecendo o conhecido, o transforma e varia, e o que aparece de fora, sem conhecimento de coisa nenhuma. Entre os escritores que descendem com novidade da velha stirpe e os que aparecem por novos por pertencer a uma estirpe incógnita há a mesma diferença que há entre o homem que nos dá uma sensação de novidade por frases novas que diz e o que nos dá uma sensação de novidade, por, falando mal nossa língua, nos dizer estropiadamente qualquer frase dela.»

Fernando Pessoa, "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação", Ática, 1996

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Perguntas Abandonadas #31


«Estava aqui sentado e sabes o que cogitava para comigo? Se não tiver fé na vida, se perder a confiança na minha mulher amada, se perder a fé na ordem das coisas e se, pelo contrário, me convencer de que tudo é um caos desordenado, maldito e, talvez, diabólico, se me atingirem todos os horrores da desilusão humana, desejarei na mesma viver, e já que levei à boca esta taça, não a largarei até que beba a última gota! Aliás, aos trinta anos sou capaz de largar a taça, mesmo que não a tenha bebido até ao fim, e de me afastar... não sei para onde. Mas, até aos trinta, sei muito bem que a minha juventude vencerá tudo, vencerá qualquer desilusão, qualquer repugnancia pela vida. Tenho perguntado a mim mesmo muitas vezes: haverá no mundo um desespero que possa vencer em mim esta sede de vida, frenética e, talvez, indecente? Cheguei à conclusão de que, pelos vistos, não existe, pelo menos até aos tais trinta anos; e, ao chegar lá, repito, talvez já não anseie por nada, assim me parece.»

 Fiódor Dostoievski, "Os Irmãos Karamázov", Editorial Presença, 2002

quarta-feira, 10 de julho de 2013

diário dos mesmos pesares #29


«Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
 - Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.»  

Herberto Helder, "Ou o Poema Contínuo", Assírio & Alvim, 2001

terça-feira, 9 de julho de 2013

quero outra noite no fim do dia #17


«As pessoas realmente frívolas são as que só amam uma vez na vida. O que elas chamam lealdade ou fidelidade, chamo eu letargia do hábito ou falta de imaginação. A fidelidade representa na vida emocional o mesmo que a coerência na vida do intelecto, apenas uma confissão de impotência. A fidelidade! Tenho de a analisar um destes dias. Está intimamente associada à paixão da propriedade. Há muitas coisas que atiraríamos fora se não receássemos que outros as apanhassem.»

Oscar Wilde, "O Retrato de Dorian Gray", Editorial Estampa, 1995

segunda-feira, 8 de julho de 2013

interpretose now #9

























«finge-se que a cama é uma jangada e depois a morte chega. esperada e celebrada com uma vida. e depois.

a própria vida é uma jangada de cujo rumo desconfiamos. como esta avenida. e o amor. e tudo, afinal.»


Ruy Belo, "Todos os Poemas", Assírio & Alvim, 2009

domingo, 7 de julho de 2013

Ouvido no estrangeiro #2


«la vérité est une nuance entre mille erreurs» 

Ernest Renan

sexta-feira, 5 de julho de 2013

encontrado debaixo da porta #35

a temperatura do corpo #28


«Se o amor é questão de corpo, há que conhecer intimamente esta ferramenta - por outras palavras, ler os anatomistas e não os poetas, frequentar as clínicas e não os teatros.»  

Miklós Szentkuthy, “À Margem de Casanova”, Editorial Teorema, 1992

quarta-feira, 3 de julho de 2013

K, o elemento estranho da tabela literária #7


1913
14 de Agosto.

O coito considerado como castigo da felicidade de viver em conjunto. Viver no maior ascetismo possível, mais asceticamente que um celibatário, é para mim a única possibilidade de suportar o casamento. Mas ela?

E apesar de tudo, mesmo se tivéssemos, F. e eu, direitos absolutamente iguais, esperanças e possibilidades idênticas, não me casaria. Contudo, este beco sem saída para o qual empurrei lentamente o seu destino torna-me o casamento uma obrigação que decerto inelutável, mas sem limites. É esse o efeito de não sei que lei secreta das relações humanas.        

Franz Kafka, "Antologia de Páginas Íntimas", Guimarães Editores, 1997

terça-feira, 2 de julho de 2013

Chefe, precisamos de mentiras novas #20


«Toda a gente passou horas em que andou desencontrado, como à espera do comboio na paragem do autocarro»

Sérgio Godinho, "Lá em Baixo", Campolide, 1979

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Chefe, precisamos de mentiras novas #19


«avanço lesto por entre a multidão insane presa de ecrãs de teelvisão alarmes soam em todo o quarteirão disparos, gritos, lançando a confusão é guerra sem quartel de empresas rivais na busca do controlo de mercados locais ou então... ou então... encena-se um directo para a teelvisão sirenes passam em grande aceleração olhando para ecrãs de teelvisão o caso surge com outra dimensão imagens com voz servindo de guião é guerra sem quartel de empresas rivais na busca do controlo de mercados locais ou então... ou então... encena-se um directo para a teelvisão»

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro, "Em Directo (Para a Teelvisão)", Há já muito tempo que nesta latrina o ar se tornou irrespirável, 1998

Teoria da Conspiração #46 (ou a Subtil Cadeia das Formas)


«A Natureza é o veículo do pensamento, num grau simples, duplo e triplo.
1. As palavras são sinais de fenómenos naturais.
2. Os fenómenos naturais específicos são símbolos de fenómenos espirituais específicos.
3. A Natureza é símbolo do espírito.» 

Ralph Waldo Emerson, "A Natureza", Sinais de Fogo, 2001