sexta-feira, 31 de maio de 2013

interpretose now #7


«Vem o terror como tudo o que é primário do sono e do sonhar. Do sono originário que esparge terror e esperança com tanta frequência indecifráveis e possessivos. Somente libertador este sono que arranca das origens, porque dá a  ver e a sentir o que na calma da vigília e até nessas raras calmas que a história consente, e que formam parte do seu poder de sedução, se dão. O terror ataca o que, adormecido, o respira, surpreendendo-o para em seguida o possuir, detendo a sua respiração, petrificando-o. Ou imobilizando-o pelo menos. E também levando-o para outro reino, esse de onde seja só a vida, continuar a estar vivo ou, pelo contrário, oferecendo-lhe o outro reino onde a determinação não tenha lugar, onde o terror que vem da origem seja evitado, portanto. E o pensamento, assim ele é aguardado, possa ser como um desconhecido que chama à porta sem chamar e que fala sem pronunciar uma palavra.»

Maria Zambrano, "Clareiras do Bosque", Relógio D'Água, 1995    

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Não respire... (ou leituras em apneia) #8



«A causa depois do efeito. A minha tese é esta, minha querida – nós trazemos na alma uma bomba e o problema está em alguém fazer lume para a rebentar. Nós escolhemos ser santos ou heróis ou traidores ou cobardes e assim. O problema está em vir a haver ou não uma oportunidade para isso se manifestar. Nós fizemos uma escolha na eternidade. Mas quantos sabem o que escolheram? Alguns têm a sorte ou a desgraça de alguém fazer lume para rebentarem o que são, ver-se o que estava por baixo do que estava por cima. Mas outros vão para a cova na ignorância. Às vezes fazem ensaios porque a pressão interior é muito forte. Ou passam a vida à espera de um sinal, um indício elucidativo. Ou passam-na sem saberem que trazem a bomba na alma que às vezes ainda rebenta, mesmo já no cemitério. Ou quem diz bomba diz por exemplo uma flor para pormos num sorriso. Ou um penso para pormos num lanho. Mas não sabem. Agora pergunto – se escolheram a maldição e alguém faz lume, quem é culpado de ela rebentar? Como é que um tipo é culpado de trazer uma bomba na alma se foi outro que a fez explodir? E como é que é culpado o tipo que fez o lume, se a bomba não era dele?» 

Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990

Pode respirar. 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

espécie de oração particular #29


Ó pudesse como os outros, criaturas destemidas, carpir o meu Destino,
           Aproveitando a minha ocasião de lamentar. A pedra fica contente
Com um ódio formal e cai e cai; as plantas indignam-se
           Com a sua dimensão única e duvidam apenas
Se a luz ou a escuridão declinam no pior sentido, e os exilados
           Mais subtis que tenham todos os caminhos satisfazem-se
Em provar que nenhum conduz a um objectivo: porque deve o Homem aprender também
           Que basta dar testemunho, porque até protestar é errado?

W.H. Auden, "O Massacre dos Inocentes", Assírio & Alvim, 1994 

terça-feira, 28 de maio de 2013

Imediatamente embora pouco a pouco #32


«- Bartleby - disse eu entrando no escritório de rosto calmo mas severo. - Estou seriamente desgostoso. Estou penalizado, Bartleby. Pensava melhor coisa de si. Imaginava-o com modos de cavalheiro, e que em qualquer dilema delicado lhe bastaria uma leve sugestão - em resumo, uma assumpção. Mas parece-me que estou enganado. Por que motivo - acrescentei, sobressaltando-me ao de leve - nem sequer tocou ainda naquele dinheiro - e apontava para onde este estava, exactamente onde eu o deixara na tarde anterior.
Nada respondeu.
- Vai ou não deixar-me? - perguntei-lhe então num acesso de súbita fúria, avançando para ele.
- Preferiria de não o deixar - retorquiu, acentuando delicadamente o não

Herman Melville, "Bartleby", Assírio & Alvim, 1988

segunda-feira, 27 de maio de 2013

a temperatura do corpo #26


«Não és já o corpo, e quando te penso não cresces, e sempre disse que seria incapaz de desejar quem não imagino. Muitas vezes te falo de estarmos próximos, outras, do hábito, e até deste modo de te não amar que me habituei.»

Rui Nunes, "Sauromaquia", Relógio D'Água, 1986

domingo, 26 de maio de 2013

diário dos mesmos pesares #28


«Todos os homens vivem rodeados de linhas de baleias. Todos nascem com cordas em volta do pescoço; é apenas quando se encontram perante uma morte súbita e rápida que os mortais percebem os perigos silenciosos, subtis e sempre presentes da vida. E se vós sois filósofos, embora sentados numa baleeira, não sentireis no vosso coração mais terror do que se vos encontrásseis sentados diante do fogo da lareira, com um atiçador e não com um arpão ao alcance da mão.» 

Herman Melville, "Moby Dick", Relógio D'Água, 2007  

sábado, 25 de maio de 2013

Teoria da Conspiração #45 (ou o Promontório Oculto dos Razoáveis)



«As paixões humanas não se detêm senão perante uma força moral que respeitem. Se toda a autoridade desse gênero faltar, reinará a lei do mais forte e, latente ou agudo, o estado de guerra será necessariamente crónico...» 

Emile Durkheim

sexta-feira, 24 de maio de 2013

o poeta sabe menos que o poema #3


Compreendo que se adorem as mulheres,
se lhes beije e acaricie a beleza

- pessoal - em outro corpo como o seu.
Pois é seu corpo incrível maravilha
cuja demonstração aturde o ar.

Um corpo de mulher é uma paisagem
que seduz olhar, suspende o ânimo
e dá ânsias de percorrer a quem contempla.

Ondulações suaves. Firmes cumes
em túrgidas colinas levantados.
Azulados arroios quase ocultos
sob a polida pele onde decorrem.

Caminhos e azinhagas atraentes.
Tímidos brejos. E outros cimos ainda
a alcançar, com curvas de delícia
e grutas que as próprias mãos vão cativar.

É grato percorrer seu doce corpo.
Sentir o seu tépido clima. E com os lábios
saborear as sensações que dele emanam.

É lógico que se amem as mulheres.
Estranho é o contrário. Até o vê-las
fazer amor é agradável.

É um céu seu corpo. O céu humano.
Fora eu mulher e lésbica seria.

J. M. Fonollosa, "Cidade do Homem: New York", Antígona, 1993

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Por vocações de Leitura #11 (o Super-Homem)

Karl Marx

Max Stirner

Albert Cossery

Slavoj Žižek

Friedrich Nietzsche

William Faulkner

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #13


«- É doloroso dar vida ao espírito bravio, e não lembrar...
- Acho que ter um tronco e equilibrá-lo é preferível a ter memória.
- Também é verdade que, com algum treino, o dentro e o fora se tornam reversíveis, quase sem dor.
- Nascer e renascer. Dar botões e ramos. Deixar cair as folhas e torná-las matéria nossa... 
- É a tua travessura de árvore. A tua pujança não recorda. Mas eu não sou árvore.
- Por que hei-de fazer como tu?
- Haverá uma outra maneira efectiva de procurar? Se viver fosse recordar, uma semente sonhante seria o seu perfeito equivalente. Olha, seríamos cristais...
- Quando desci ao espírito bravio...
- Sim, recorda, se tens necessidade de recordar...
- Fiquei admirada com a sua ousadia.
- Como assim?
- Vibrava indefectível com qualquer frequência de luz.
- É assim que ele sente.
- Voltei a sentir, de novo, o desejo de um tálamo aberto e imaculado.
- E ele?»  

 Maria Gabriela Llansol, "Parasceve", Relógio D'Água, 2007

terça-feira, 21 de maio de 2013

A vida não é um sonho #30


«Nunca chegamos aquele Algo que está em falta. Aquilo que esperamos e esperamos nunca chega. 
Aquilo que todos esperam nunca aparece. É este o pecado maior»

Robert Walser

domingo, 19 de maio de 2013

sábado, 18 de maio de 2013

quero outra noite no fim do dia #15


«Da minha janela vê-se Paris... Em baixo é tudo liso... até que se põe a trepar... até nós... até Montmartre... Um telhado empurra outro, é em ponta, fere, sangra ao longo das luzes, ruas em azul, em vermelho, em amarelo... Lá mais em baixo é o Sena, as pálidas brumas, um rebocar que segue o seu caminho... num grito de cansaço... Lá mais ao longe ainda são as colinas... As coisas assemelham-se... A noite vai-nos apanhar. É a minha porteira que bate na parede?»


Louis Ferdinand Céline, "Morte a Crédito", Assírio & Alvim, 1986

quinta-feira, 16 de maio de 2013

interpretose now #6


«Onde a carne se levanta ou se abre.
Somos víviparos. Vivemos antes de nascer. Aconteceu que o nosso coração bateu antes de respirarmos. Os nossos ouvidos ouviram antes de os nossos lábios descobrirem a existência do ar. Nadámos na água escura antes de as nossas pálpebras se terem aberto, antes de os nossos olhos se terem ofuscado, depois cegado, depois vissem, antes de a nossa garganta ter secado, depois sufocasse um instante, depois conseguisse comer o ar, depois imitar palavras cuja entoação parecia tranquilizadora.»

Pascal Quignard, "As Sombras Errantes", Gótica, 2003


terça-feira, 14 de maio de 2013

Perguntas Abandonadas #29


«- E as palavras, têm vida?
- Palavras para eles têm carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.»

Manoel de Barros, “O Guardador de Águas”, Ed. Civilização Brasileira, 1989

segunda-feira, 13 de maio de 2013

a poesia não me interessa #43


Ir até ao extremo é ficar sem lugar,
porque o extremo não é um lugar,
mais além não há espaço
e quem foi até ao extremo
já não pode retroceder.
Ir até ao extremo consiste precisamente
em achar a impossibilidade do regresso.
Ou talvez tão só
a impossibilidade.
E o impossível não precisa de lugar.

Roberto Juarroz, "Poesia Vertical", Campo das Letras, 1998

domingo, 12 de maio de 2013

Imediatamente embora pouco a pouco #31


«Se o coração é habitado pela hesitação, a alma lamentá-lo-á. Vergonha e honra chocam-se onde a coragem de um homem resoluto se torna matizada como a plumagem da pega. Mas esse homem poderá ainda assim ser prazenteiro, porque o Céu e o Inferno ocupam partes iguais dentro dele. O amigo da infidelidade veste-se de negro e ostenta um aspecto obscuro, enquanto o homem de temperamento leal tende para o branco.»

Wolfram von Eschenbach, "Parsival", Vega, 2010

sábado, 11 de maio de 2013

Dicionário das causalidades #21


V

Vegetalmente

«De todo lo que he hecho, de todo lo que he perdido,
de todo lo que he ganado sobresaltadamente,
en hierro amargo, en hojas, puedo ofrecer un poco.

Un sabor asustado, un río que las plumas
de las quemantes águilas van cubriendo, un sulfúrico
retroceso de pétalos.
                              No me perdona ya la sal entera
ni el pan continuo, ni la pequeña iglesia devorada
por la lluvia marina, ni el carbón mordido
por la espuma secreta.

He buscado y hallado, pesadamente,
bajo la tierra, entre los cuerpos temibles,
como un diente de pálida madera
llegando y yendo bajo el ácido duro,
junto a los materiales
de la agonía, entre luna y cuchillos,
muriendo de nocturno.
                                  Ahora, en medio
de la velocidad desestimada, al lado
de los muros sin hilos,
en el fondo cortado por los términos,
aquí estoy con aquello que pierde estrellas,
vegetalmente, solo.»

Pablo Neruda, "Terceira Residência", Campo das Letras, 2007

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #12


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tuido isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.

Ruy Belo, "O Problema da Habitação", Assírio & Alvim, 2013

quinta-feira, 9 de maio de 2013

esquece tudo o que te disse #33


Noli foras ire, in te ipsum redi, in interiore homine habitat veritas.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

espécie de oração particular #28


«São tempos temíveis, meu Deus. Esta noite, pela primeira vez, passei-a deitada no escuro de olhos abertos e a arder, e muitas imagens de sofrimento humano desfilavam perante mim. Vou prometer-te uma coisa, Deus, só um a ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E é esta a única coisa que podemos preservar nestes tempos e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros. Sim, meu Deus, quanto ás circunstâncias pareces não ter lá grande influência sobre elas, “é evidente que fazem parte indissolúvel desta vida”. Também não te chamo à responsabilidade por isso; tu é que podes mais tarde chamar-nos à responsabilidade. E, quase a cada batida do coração, torna-se-me isto mais nítido: que tu não nos podes ajudar, que nós devemos ajudar-te e que a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas. Existem pessoas, a sério que é verdade, que no último momento põem aspiradores a salvo e garfos e colheres de prata em vez de ti, meu Deus. E há gente u quer salvar o corpinho no qual se acolhem somente mil medos e rancores. E dizem: “A mim não me lançam eles a garra.” E esquecem-se de que ninguém fica nas garras de ninguém, estiverem nos teus braços. Recomeço a ficar um bocadinho mais calma, Deus, por causas desta conversa contigo. Hei-de ter mais conversas contigo no futuro próximo e, deste modo, impedir que me fujas. Também hás-de viver tempos de maior privação em mim, meu Deus, não serás alimentado tão fortemente pela minha confiança, mas acredita que continuarei a trabalhar e a ser-te fiel e não te expulsarei do meu território.»

Etty Hillesum, "Diário 1941-1943", Assírio & Alvim, 2008

terça-feira, 7 de maio de 2013

ninguém é filho das ervas #18


«If we make a poem of celebration, it has to include a lot of darkness for it to be real.»
Robert Hass

segunda-feira, 6 de maio de 2013

dedicatória #23**


** dedicada a todas as destemidas.

domingo, 5 de maio de 2013

dedicatória #23*


* dedicada a todas as dedicadas.

sábado, 4 de maio de 2013

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Chefe, precisamos de mentiras novas #17


«Tenho um sentido muito forte de responsabilidade perante o mundo, de não poder viver apenas para minha própria satisfação, de só o facto de estar no mundo me dar uma obrigação de fazer tudo ao meu alcance para tornar o mundo um local melhor onde se viver, por pequena que seja a escala em posso actuar» 
Henry Spira

 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

a temperatura do corpo #26


«A ausência da dor equivale à presença do mundo. A presença da dor equivale à ausência do mundo. Em virtude destas equações, a dor transforma-se em poder»
Elaine Scarry

quarta-feira, 1 de maio de 2013

diário dos mesmos pesares #27





















«[...] algumas pessoas são levadas a crer que fazer dinheiro constitui o objecto da gestão doméstica e pensam que tudo o que há a fazer na vida é aumentar o seu pecúlio sem limites [...]; alguns homens transformam qualquer qualidade ou arte num meio de fazer dinheiro: concebem isto como fim e todas as coisas têm de contribuir para a promoção desse fim»  

Aristóteles, "Política", Vega, 1998