segunda-feira, 29 de novembro de 2010

dedicatória #10*


* dedicada aos dois grampos que há três anos apertam as nossas prateleiras.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Não respire... (ou leituras em apneia) #2



«Há uma profunda diferença entre a luta para não morrer e a luta para viver. Os homens que lutam para não morrer conservam a sua dignidade, defendem-se ciosamente - todos: homens, mulheres, crianças - , com feroz obstinação. Os homens não dobravam a cerviz. Fugiam para as montanhas, para as florestas, viviam nas cavernas, lutavam como lobos contra os invasores. Lutavam para não morrer. Era uma luta nobre, digna, leal. As mulheres não lançavam o corpo no mercado negro para comprarem bâton, meias de seda, cigarros ou pão. Sofriam a fome, mas não se vendiam. Não vendiam os seus homens ao inimigo. Antes queriam ver os próprios filhos morrer de fome do que venderem-se, que venderem os seus homens. Somente as prostitutas se vendiam ao inimigo. Os povos da Europa, antes da libertação, sofriam com maravilhosa dignidade. Lutavam de cabeça erguida. Lutavam para não morrer. E os homens, quando lutam para não morrer, agarram-se com a força do desespero a tudo o que constitui a parte viva, eterna, da vida humana, a essência, o elemento mais nobre e mais puro da vida: a dignidade, o orgulho, a liberdade da própria consciência. Lutam para salvar a alma.
Mas depois da libertação os homens tiveram de lutar para viver. É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver. Só para salvar a própria pele. já não é a luta contra a escravidão, a luta pela liberdade, pela dignidade humana, pela honra. É a luta contra a fome, é a luta por um pedaço de pão, por um pouco de lume, por um farrapo para cobrir os filhos, por um pouco de palha onde estender o corpo. Quando os homens lutam para viver, tudo, até uma panela vazia, uma ponta de cigarro, uma casca de laranja, uma côdea de pão seco apanhado no lixo, um osso esburgado, tudo tem para eles um valor enorme, decisivo. Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver; de todas as infâmias, de todos os crimes, para viver. Por um pedaço de pão, cada um de nós está pronto a vender a própria mulher, as filhas, a macular a própria mãe, a vender os irmãos e os amigos, a prostituir-se a um outro homem. Está pronto a ajoelhar-se, a arrastar-se pelo chão, a lamber os sapatos de quem pode matar-lhe a fome, a dobrar a cerviz sob o chicote, a limpar, sorrindo, a face onde lhe escarraram. E tem um sorriso humilde, doce, um olhar cheio de uma esperança famélica, bestial, uma esperança espantosa.»

Curzio Malaparte, "A Pele", Edição "Livros do Brasil", 1980

Pode respirar.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

o mal-estar da Civilização #19



«Quero o inumano dentro da pessoa; não, não é perigoso, pois de qualquer modo a pessoa é humana, não é preciso lutar por isso: querer ser humano me soa bonito demais.
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade. Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em "pureza", nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.»

Clarice Lispector, "A Paixão Segundo G.H.", Relógio D'Água, 2000

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

quero outra noite no fim do dia #3



«A noite menstruava uma espécie de crude. Poderia parecer que era a noite, mas não. Era já uma outra coisa. Mais espessa. Mais peremptória. Algo que se poderia confundir com o nosso isolamento.»

Vasco Gato, "Rusga", Trama, 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

quero outra noite no fim do dia #2



« - A voz ascende como um membro das suas tramas de sangue.

Desenvolve-se nas noites descentradas»

Herberto Helder