sábado, 30 de abril de 2011

Ela tem os teus olhos #1



«Em muitos aspectos, a televisão torna desnecessários os golpes de Estado e as detenções em marcha da minha imaginação. Podemos começar a perceber a irrelevância de tais actos, agora que um golpe mais subtil se aproxima.
Dá-se directamente no espírito, na percepção e nos modelos sociais de cada indivíduo. Um instrumento tecnológico torna-o possível, e talvez inevitável, enquanto impede a consciência de reparar no que está a acontecer.»

Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Momento Pergaminho #6



«Mãe, posso ir nadar?
Sim, minha querida filha.
Pendura a roupa num ramo de nogueira,
mas não te aproximes da água.»

Mother Goose

Jean Shinoda Bolen, "As Deusas em cada Mulher", Planeta Editora, 1998

quinta-feira, 28 de abril de 2011

a temperatura do corpo #7



«Não é nenhum capricho! exclamou ela.
Então o que é? perguntei apavorado.
Despertou em mim esse instinto, disse ela tranquilamente como que reflectindo; talvez jamais visse a luz do dia se não o tivesse despertado, desenvolvido e agora ele atingiu uma força irresistível que enche meu ser, que me proporciona o prazer mais desejável e apesar disso tu querias que recuasse, tu, mas és tu um homem?»

Leopold von Sacher Masoch, “A Vénus de Kazabaika”, Edições Afrodite,1966

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Orelhas de Elefante #18



Porque há musicas de outras dimensões.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

o combate com o demónio #2



Aristides de Sousa Mendes (1885–1954)

«Sousa Mendes desobedeceu a Salazar; Salazar destruiu-o.»

Rui Afonso

domingo, 24 de abril de 2011

Corpus Christi Carol #4



«É claro e evidente que constitui um abuso, um erro, uma ilusão, uma mentira e uma impostura querer fazer passar leis e instituições puramente humanas por leis e por instituições sobrenaturais e divinas. Ora, não há dúvida que todas as religiões que existem no mundo são apenas, como disse, invenções e instituições puramente humanas, e não há dúvida que aqueles que as inventaram só se serviram do nome e da autoridade de Deus para melhor e mais facilmente fazerem aceitar as leis e as ordenanças que quiseram estabelecer.»

Jean Meslier, "Memória", Antígona, 2003

sexta-feira, 22 de abril de 2011

a poesia não me interessa #24



«Não é necessário observar o trabalho de alguém
para saber se é essa a sua vocação,

basta olhá-lo nos olhos:
um cozinheiro apurando um molho,

um cirurgião abrindo a pele,
um escriturário preenchendo uma relação

de embarque, têm a mesma expressão
distraída, embevecidos na sua tarefa.

Que bela é essa devoção
do olho pelo objecto.

Ignorar a deusa sedutora,
abandonar os sacrários magníficos

de Rea, Afrodite, Demeter, Diana,
preferir rezar a S. Focas,

Santa Bárbara, S. Saturnino,
ou outro padroeiro qualquer,

de cujo mistério se seja merecedor,
que passo gigantesco foi dado.

Deveria haver monumentos e odes
aos heróis desconhecidos que começaram,

a quem arrancou as primeiras faíscas
da pederneira e esqueceu o jantar,

ao primeiro coleccionador de conchas
que ficou celibatário.

Se não fossem eles, ode estaríamos?
Ainda ferozes, sem hábitos caseiros,

errando através das florestas,
com nomes sem consoantes,

escravos da Dama gentil, sem
noções da civilidade

e hoje à tarde, para esta morte,
não haveria agentes funerários.»

W.H. Auden, "O Massacre dos Inocentes", Assírio & Alvim, 1994

quarta-feira, 20 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

o homem de quarta-feira #39



«A construção da vida passa neste momento muito mais pela força dos factos do que pelas convicções. Concretamente, de factos que quase nunca e em lugar algum chegaram a transformar-se em fundamento de convicções. Em tais circunstâncias, a autêntica actividade literária não pode ter a pretensão de se desenvolver num âmbito estritamente literário - essa é antes a expressão habitual da sua esterilidade. Uma eficácia literária significativa só pode nascer de uma rigorosa alternância entre acção e escrita. Terá de cultivar e aperfeiçoar, no panfleto, na brochura, no antigo jornal, no cartaz, aquelas formas despretensiosas que se ajustam melhor à sua influência sobre comunidades activas do que o ambicioso gesto universal do livro. Só esta linguagem imediata se mostra capaz de responder activamente às solicitações do momento. As opiniões estão para o gigantesco aparelho da vida social como o óleo para as máquinas: ninguém se aproxima de uma turbina e lhe verte óleo para cima. O que se faz é ejectar algumas gotas em rebites e juntas escondidos que têm de se conhecer bem.»

Walter Benjamin, "Imagens de Pensamento", Assírio & Alvim, 2004

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Teoria da Conspiração #23 (ou o Fundo Mitológico da Ironia)



«No início havia um deus da noite e da tempestade, um ídolo negro sem olhos, nu e coberto de sangue. Mais tarde, nos tempos da república, havia muitos deuses e suas esposas e crianças, camas que rangiam e raios que explodiam de modo inofensivo. No fim apenas neuróticos supersticiosos traziam nos bolsos pequenas estátuas de sal, representando o deus da ironia. Nessa altura não havia um deus que sobressaísse.

E então vieram os bárbaros. Também eles tinham em grande conta o deus da ironia. Esmagá-lo-iam com os calcanhares e usá-lo-iam para decorar os seus manjares.»

Zbigniew Herbert, "Escolhido Pelas Estrelas", Assírio & Alvim, 2009

domingo, 17 de abril de 2011

Chefe, precisamos de mentiras novas #1



«- Que balbúrdia é esta?, perguntou o Chefe. Eu estava desesperado, mas tranquilo. Que vêm agora vocês...?!
- Os economistas dizem que é preciso cortar ainda mais nas despesas! - disseram de uma vez os Auxiliares, com respiração ofegante.
- Quais despesas?
- As dos outros!
- Ah, as dos outros! - Exclamou o Chefe, aliviado.
- Sim, Chefe, mas tal não nos deve descansar. Porque os economistas (e esta palavra era dita como se existisse receio de a repetir em voz alta) quando dizem que é urgente cortar as despesas dos outros não deixam de olhar para nós. E fixamente.
- Para nós?! - exclamou o Chefe, indignado. - Mas nós não somos os outros!
Subitamente todos se calaram, ao mesmo tempo, como se tivessem combinado.»

Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Kraus", Caminho, 2005

sexta-feira, 15 de abril de 2011

o Mal-estar da Civilização #20



«Estou de acordo, o homem é um animal, essencialmente criador, predestinado a aspirar a um fim na vida conscientemente e a dedicar-se à arte da engenharia, ou seja, a abrir para si mesmo um caminho, eterna e ininterruptamente, seja para onde for. Mas talvez lhe apeteça às vezes desviar-se para qualquer lado, precisamente porque é obrigado a abrir esse caminho, e também porque, por mais tolo que seja quem age directamente, talvez lhe aconteça de vez em quando pensar que esse caminho vai sempre seja para onde for e que o principal não consiste em que direcção segue, mas no próprio facto de seguir e em que a criança da boa moral não despreze a arte da engenharia e não se dedique à folga nociva que, como se sabe, é a mãe de todos os males. O homem gosta de criar e de construir caminhos, é indiscutível. Mas por que gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? Vá, digam lá!
»

Fiódor Dostoiévski, "Cadernos do Subterrâneo", Assírio & Alvim, 2000

quinta-feira, 14 de abril de 2011

K, o elemento estranho da tabela literária #1



«Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num insecto monstruoso. Estava deitado de costas, sentia a carapaça dura e, ao elevar um pouco a cabeça, via a barriga arredondada, de cor castanha, dividida em faixas rígidas arqueadas, e no alto dela, a coberta da cama em equilíbrio instável, quase a resvalar. As muitas pernas, penosamente finas em comparação com a sua actual corpulência, tremiam diante dos seus olhos perplexos.
»

Franz Kafka, "A Metamorfose", Quasi Edições, 2008

quarta-feira, 13 de abril de 2011

a vida não é um sonho #9



«Quem transforma a vida num ofertório de instantes, quem lança ao mar as horas e o tambor constante é o herdeiro de uma alegria antiga, cobrindo-se de luto e de tinta tinta preta para descansar, e através da música e das imagens recolher-se, em meio aos gritos do feroz sargento que diz Acorde, Deseje, Marrete, Martele, Produza, e contemplar a imagem calma, azul-escura, depois da chuva. Às vezes, ainda de manhã, antes que o relógio introduza o vício, antes que a borra avinagrada de uma outra vida, melhor que esta, deixe de vez a minha boca, consigo agarrar algumas franjas de um sonho enlutado, mas feliz e único.
»

Nuno Ramos, "Ó", Cotovia, 2010

segunda-feira, 11 de abril de 2011

diário dos mesmos pesares #7





















«Aqui
É tudo,
Nada
Entre Tudo e Nada.
Movimento
Gosto
E
Quando
Mais
Fim,
Causa Amante.»

MGL

sábado, 9 de abril de 2011

a poesia não me interessa #23



«Basta de escavar, de dilapidar a nossa mais próxima parte.
O pior está em todos nós, caçador, no nosso flanco. Vós que aqui não sois mais do que uma pá levantada pelo tempo, voltai-vos sobre o meu amor, que soluça a meu lado, e despedaçai-me, peço-vos, fazei-me morrer de uma vez por todas.»

René Char, "Furor e Mistério", Relógio d'Água, 2000

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Imediatamente embora pouco a pouco #10



Instruções para chorar

«Prescindindo dos motivos, vamos ater-nos à maneira correcta de chorar, ou seja, um pranto que não ingresse no escândalo, nem insulte o sorriso com paralela e torpe semelhança. Consiste o pranto médio ou corrente numa contracção geral do rosto e num som espasmódico acompanhado de lágrimas e ranho, este último no final, já que o pranto termina no momento em que uma pessoa se assoa energicamente. Para chorar, dirija a imaginação para si mesmo, e se isto lhe for impossível por haver contraído o hábito de acreditar no mundo exterior, pense num pato coberto de formigas ou nesses golfos do estreito de Magalhães onde nunca ninguém entra. Quando o pranto começar, cobrirá com decoro o rosto, usando para tal ambas as mãos com as palmas viradas para dentro. As crianças chorarão com a manga do bibe a tapar a cara, e de preferência a um canto do quarto. Duração média do pranto, três minutos.»

Julio Cortázar, "Histórias de Cronópios e de Famas" Editorial Estampa, 1973

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O milagre do código genético



©Kubrick,Stanley;1987

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Retrato de Família #15




Hermann B. Karamazov (1886-1951)

«Quem vai sobre as ondas do mar não tem objectivo e não pode cumprir-se: está encerrado em si mesmo. Nele o possível dormita. Quem quer que seja que o ame só o pode amar pelo que ele promete, pelo que repousa nele, não pelo que atingiu ou pelo que atingirá. Por isso o homem da terra firme ignora o amor e toma por amor a ansiedade em que vive.»

terça-feira, 5 de abril de 2011

Por vocações de Leitura #2


Alice Carroll

Isabel Somerset Maugham

Gabriela Mann

segunda-feira, 4 de abril de 2011

espécie de oração particular #8



«O Sol secará e o vento esgotará a sordidez e imundice da natureza. Como quando o vento do sul faz derreter os bancos de neve e a face da terra reverdesce com ele, assim também o espírito que avança cria ornamentos à sua passagem e transporta consigo a beleza que visita e a canção que o encanta. Criará belos rostos, corações ternos, palavras sábias e actos heróicos à sua passagem, até que o Mal deixe de existir. O reinado do Homem sobre a Natureza, que não provém da observação - um domínio que, por agora, se encontra para além do seu sonho de Deus -, será alcançado com o mesmo deslumbramento que o de um cego que gradualmente é devolvido à visão perfeita.»

Ralph Waldo Emerson, "A Natureza", Sinais de Fogo, 2001

domingo, 3 de abril de 2011

Dedicatória #11*



* dedicada a todos os que só desligam as luzes quando o adversário deixa a sala.

sábado, 2 de abril de 2011

Dicionário das causalidades #5



E

Exercitação

«Difícil é que o raciocínio e o ensino, ainda que de bom grado lhes demos fé, sejam assim assaz poderosos para nos encaminharem à acção, se, ademais, não exercitarmos e formarmos pela experiência a alma ao andamento a que a pretendemos acomodar: de outro modo, quando ela estiver na iminência de agir, sem dúvida que se sentirá embaraçada. Eis porque, entre os filósofos, os que quiseram atingir uma maior excelência, receando que ela os surpreendesse inexperientes e novatos no combate, não se contentaram em esperar no remanso do abrigo pelos rigores da Fortuna, antes, foram ao seu encontro e deliberadamente se expuseram à prova das dificuldades: uns abandonaram os bens materiais para se exercitarem na pobreza voluntária; outros andaram à cata de fadigas e buscaram uma penosa austeridade de vida para se endurecerem contra a dor e o sofrimento; outros ainda, privaram-se das mais preciosas partes do corpo, tais como os olhos e os membros genitais, não fosse a sua utilização, demasiado prazenteira e amena, relaxar e amolecer a firmeza da sua alma. Porém, a morrer, a maior tarefa que temos de fazer, a exercitação não nos pode ajudar. Podemos, pela usança e pela experiência, fortalecermo-nos contra as dores, a vergonha, a indigência e outros acidentes que tais, mas, quanto à morte, só a podemos ensaiar uma vez - quando a ela chegarmos, todos somos aprendizes.
Houve na Antiguidade homens tão exímios a gerir o seu tempo que, na própria morte, tentaram degustá-la e saboreá-la, e que entesaram o espírito para ver o que é que, afinal, era o passamento, mas não voltaram cá para nos dar novas»

Montaigne, "Ensaios", Relógio d'Água, 1998

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Toda a humilhação leva à morte #11



«Na verdade, por minúscula que seja, uma obra de arte acrescenta ao que já é qualquer coisa que não estava lá. O que não deveria normalmente acontecer causa embaraço. Mesmo uma tradição que reaparece pode ser intrusa e por assim dizer perturbadora. Um segundo ponto torna a arte embaraçosa: não só aumenta o que é imprevisível, como odeia a morte. Os artistas são assassinos da morte. Neste sentido, é normal serem castigados pelos que tem como profissão tanto administrá-la, como aumentá-la.»

Pascal Quignard, "As Sombras Errantes", Gótica, 2003