segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Não respire... (ou leituras em apneia) #1



«Tu lutas contra esta figura que dentro de ti te impele; tu queres fugir de ti próprio, queres separar-te de ti mesmo, e não podes. Só consegues, à custa de esforços desesperados, manteres-te dentro da fórmula ou da máscara que escolheste, e arredar o crime e a loucura, e fingir e sorrir.»

Raul Brandão, "Húmus", Campo das Letras, 2000

Pode respirar.

domingo, 29 de novembro de 2009

a poesia não me interessa #10



Cânticos*

I

Não queiras ter pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Estarás em tudo,
Como Deus.

II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens ...
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade ...
É a eternidade.
És tu.

III

Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

* (3 de 26)

Cecília Meireles, "Antologia Poética", Editora Record, 1963

sábado, 28 de novembro de 2009

dedicatória #4*



* dedicada a quem, desde 2007, tem conduzido o esférico para a frente.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Toda a humilhação leva à morte #5



«Exprimir sob a forma de arte, com finalidade de catarse, uma tragédia interior, apenas o pode fazer o artista que, no momento em que vivia a tragédia, ia já tecendo os fios construtivos, ia já realizando a incubação criadora. Não existe a tempestade sofrida loucamente e, depois, a libertação através da obra, arriscando até o suicídio. É tão verdade que os artistas que realmente se mataram por causa dos seus casos trágicos são habitualmente cantores ligeiros, diletantes de sensações, que nunca nas suas obras deixaram transparecer nada do profundo cancro que os roía. Donde se conclui que o único modo de fugir ao abismo é encará-lo, medi-lo, sondá-lo e mergulhar nele.»

Cesare Pavese, "O Ofício de Viver", Relógio D'Água, 2004

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

diário dos mesmos pesares #1



26 de Novembro

Às vezes digo para comigo: o teu destino não tem nenhum com que se compare: podes considerar todos os outros homens felizes... nunca mortal algum sofreu como tu.
Depois leio qualquer poeta de outros tempos e parece-me que estou lendo no meu próprio coração. Tenho tanto a suportar! Já haveria antes de mim homens tão infelizes como eu sou?

Goethe, "Werther", Guimarães Editores, 1998

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

o homem da quarta-feira #15



«É um facto, Nietzsche enlouqueceu, Hölderlin endoideceu, Rilke não conseguiu entrar com o seu corpo no poema, Virginia Woolf suicidou-se, Spinoza acabou silenciando-se, Kafka foi apanhado a tempo por uma tuberculose galopante, Pessoa foi-se degradando no alcoolismo, Kierkgaard acabou triste e só. Nestas coisas, não há hereditariedade, mas há continuidade de problemática e, o que é bem mais importante, permanência do vórtice vibratório.»

Maria Gabriela Llansol, "Na Casa de Julho e Agosto", Relógio D`Água, 2003

terça-feira, 24 de novembro de 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Teoria da Conspiração #7 (ou a liberdade é escravidão)



«Enquanto não tomarem consciência não se revoltarão e enquanto não se revoltarem não poderão tomar consciência».

George Orwell, "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro", Antígona, 1991

domingo, 22 de novembro de 2009

Imediatamente embora pouco a pouco #1



«Viver a abolição do tempo, viver esse momento, rápido como o "relâmpago", pelo qual dois instantes, infinitamente separados, vêm "pouco a pouco embora imediatamente" ao encontro um do outro, unindo-se como duas presenças que, pela metamorfose do desejo, se identificassem, é percorrer toda a realidade do tempo, e ao percorrê-la experimentar o tempo como espaço e lugar vazio, quer dizer, livre de acontecimentos que habitualmente o preenchem . Tempo puro, sem acontecimentos, vacância movente, distância agitada, espaço interior em devir onde os êxtases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante, o que significa tudo isso?»

Maurice Blanchot, "O Livro por Vir", Relógio D` Água, 1984

sábado, 21 de novembro de 2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

o fundo do copo

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©Haneke, Michael;2005

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Orelhas de Elefante #9


o Anjo

Lisa Gerrard, "The Black Opal", Gerrard Records, 2009



o Fantasma

Tom Waits, "Glitter and Doom Live", Anti, 2009


Porque há musicas de outras dimensões.


«Canto porque... sou um cantor. Mas uso-vos para isso, porque... preciso de ouvidos».

Max Stirner, "O Único e a sua Propriedade", Editora Antígona, 2004

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

o homem da quarta-feira #14



«Olha, há um tesouro na casa ao lado.
— Mas não há casa alguma aqui ao lado.
— Então construiremos uma!»

Louis Pauwels e Jacques Bergier, "O Despertar Dos Mágicos", Livraria Bertrand, 1973 (relato de um diálogo dos Irmãos Marx)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

a poesia não me interessa #9



Ela penteia o seu cabelo como se penteia o dos mortos:
traz os cacos azuis debaixo da camisa.

Traz os cacos do mundo num cordão.
Ela sabe as palavras mas limita-se a sorrir.

Mistura o seu sorriso no cálice de vinho:
tens de o beber, para estar no mundo.

Tu és a imagem que os cacos lhe mostram
quando ela, pensativa, se inclina sobre a vida.


Paul Celan, "Sete Rosas Mais Tarde", Livros Cotovia, 1993


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

electrocardioTrama #3 (ou a actividade cardíaca da máscara)



«Sonoko estava agora nos meus braços. Respirando com força, ficou afogueada e fechou os olhos. Os seus lábios eram de uma beleza infantil. Mas não despertava em mim qualquer desejo. Apesar disso, eu não desistia de esperar que alguma coisa acontecesse repentinamente dentro de mim - certamente, no momento em que a beijasse, descobriria enfim a minha "normalidade", o meu verdadeiro amor.
A máquina pusera-se em movimento. Nada a podia deter.
Pousei os meus lábios sobre os dela. Passou um segundo. Nem a mínima sensação de prazer. Dois segundos. Exactamente a mesma coisa. Três segundos... Compreendi tudo.»

domingo, 15 de novembro de 2009

espécie de oração particular #1



«Agradeço esta injustiça, esta afronta que me acordou, e cuja sensação viva me atirou para longe da sua causa ridícula, mas concedeu força e gosto pelo meu próprio pensamento, ao ponto de os trabalhos que executo terem beneficiado, enfim, da minha cólera; a investigação das minhas leis aproveitou com este incidente»

Paul Valéry, "O Senhor Teste", Relógio D'Água, 1985

sábado, 14 de novembro de 2009

Retrato de Família #7

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Boris V. Karamazov (1920-1959)

«Nem militares nem padres porque o meu sonho foi sempre morrer sem intermediários»

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

o Mal-estar da Civilização #10



«Os especialistas da fome no mundo (há muitos e trabalham em conjunto com outros especialistas empenhados em fazer-nos acreditar que vivemos num reino de abundantes delícias, embora nenhuma “grande farra” se vislumbre...) vêm comunicar-nos os seus cálculos: o planeta será capaz de produzir a quantidade suficiente de cereais para que ninguém passe fome, mas o que é perturbante nessa visão idílica é o facto dos “países ricos” consumirem abusivamente metade dos cereais, só para alimentação do seu gado. Mas quando se conhece o gosto desastroso da carne que nos chega dos matadouros, proveniente de engorda acelerada à base de cereais, poderá falar-se de “países ricos”? Certamente que não. Não é para nos fazer viver no sibaritismo que uma parte do planeta tem de morrer à fome: é para nos fazer viver na lama. O eleitor, contudo, adora ser lisonjeado quando lhe lembram que o seu coração pode estar a ficar um pouco insensível - ele a viver tão bem enquanto outros países contribuem, à custa dos cadáveres dos filhos, stricto sensu, para que vá engordando. O que agrada ao eleitor, neste discurso, é ouvir dizer que vive como um rico. Sente-se bem a acreditar nisso.»


atribuído a Guy Debord, "Enganar a Fome", frenesi, 2000


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Toda a humilhação leva à morte #4



«Há um caminho coberto de neve que leva para dentro do êxtase. Esse caminho é a morte.»

Walter Benjamin (1892-1940)

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

em sentido



©Shyamalan,M. Night;1999

terça-feira, 10 de novembro de 2009

o homem da quarta-feira #13



«Há uma velha história acerca de um trabalhador suspeito de roubar no trabalho: todas as tardes, quando sai da fábrica, os vigilantes inspeccionam cuidadosamente o carro de mão que ele empurra, mas nunca encontraram seja o que for. Até que um dia se descobre a trama: o que o trabalhador rouba são carros de mão!»

Slavoj Žižek, "Violência", Relógio D’Água, 2009

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Teoria da Conspiração #6 (ou o cheiro da inconveniência)



«Florista: Compra-me uma rosa?
Artur: Não, hoje não.
Florista: É isso que oiço todos os dias da sua boca. (Para Edgar) E o senhor?
Edgar (compra a rosa e oferece-a à criada de mesa, com quem está a conversar.)
Artur: Só quero saber de mim e de mais ninguém, estou insatisfeito comigo mesmo, mas isso até produz um belo efeito. Esta criada é muito atraente, sente respeito por mim e está furiosa comigo. É melhor assim, do que se me fizesse sorrisos. Nesta vida, uma pessoa ou é tida por boazinha e tratada com pouca consideração ou é levada a sério e evitada. Eu prefiro a segunda modalidade. Com as mulheres, há que fazer-lhes frente com delicadeza, para causar boa disposição.
Edgar (levanta-se, despede-se e sai).
Artur (dirigindo-se à rosa que a criada de mesa pôs numa jarra): Ele foi o nobre ofertante e eu sou o grosseiro egoísta. A franqueza é simpática, não é? (aspira o perfume da rosa) Como é doce o teu perfume!
A criada de mesa (sorrindo divertida): Não são os atenciosos que impressionam as mulheres. Nós, as mulheres, tratamos com todo o respeito aqueles que não nos ligam nenhuma. São os muito ocupados, os comprometidos que nos atraem. (Para Artur:) Tu vieste cá só para matar a fome. O que haverá por detrás desta testa? (Afaga-o.)
Artur: Tu não me tens por desprovido de sentimentos.
A criada de mesa: Não! Os teus olhos atraiçoam-te com demasiada clareza. Esse teu ar de superficialidade é apenas um disfarce. És alguém que sabe o que é sofrer, e é por isso que eu te quero bem, um pouco.
Artur: Doravante, passarei a cumprimentar-te com as mais profundas vénias. É bonita a rosa que aquele homem te ofereceu.
A criada de mesa: Infelizmente, não foste tu quem ma ofereceu.
Artur: A minha, já eu a ofereci e estou preso a isso. A fidelidade impõe-nos obrigações, mas faz-nos felizes.»

Robert Walser, "A Rosa", Relógio D'Água, 2004

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

o Mal-estar da Civilização #9



«[...] incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos. Basta passar em revista o imaginário deste fim de século -- da ficção à música, do cinema ao teatro, da biologia à tecnologia -- para ter uma ideia do ponto a que chegou um mundo onde o horror se tornou invisível, consumido como pura virtualidade, para ter uma ideia da metamorfose da cultura humana. Pode discutir-se se a desordem em que estamos mergulhados -- desde a económica até à da legalidade e da ética -- releva ou não, em sentido próprio, do conceito de caos. Do que não há dúvidas é de que o habitamos como se fosse o próprio esplendor.»

Eduardo Lourenço, "O Esplendor do Caos", Gradiva, 1998

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

puro veludo



©Lynch, David;1988

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

o homem da quarta-feira #12



O Leão e o Rato

Um Leão que havia apanhado um Rato estava prestes a matá-lo, quando o Rato lhe disse:
- Se me poupares a vida, farei o mesmo por ti um dia destes.
O Leão, num acto de generosidade, deixou-o ir. Aconteceu que, pouco tempo depois, o Leão foi apanhado por uns caçadores e atado com uma corda. O Rato, ao passar pelo local e vendo o seu benfeitor indefeso, roeu-lhe a cauda.

Ambrose Bierce, "Esopo Emendado & Outras Fábulas Fantásticas", Antígona, 1996

terça-feira, 3 de novembro de 2009

a poesia não me interessa #8





Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E então pensei: vou-te escrever. Mas não te quero amar no tempo em que te lembro. Quero-te amar antes, muito antes. É quando o que é grande acontece. E não me digas diz lá porquê. Não sei. O que é grande acontece no eterno e o amor é assim, devias saber. Ama-se como se tem uma iluminação, deves ter ouvido. Ou se bate forte com a cabeça. Pelo menos comigo foi assim. Ou como quando se dá uma conjução de astros no infinito, deve vir nos livros.Ou mais provavelmente esse tempo nunca pôde existir, que é quando realmente existe o que vale a pena existir.

Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Teoria da Conspiração #5 (ou a praga de esperar)

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«Não é necessário que saias de casa. Permanece à mesa e escuta. Nem sequer escutes, aguarda apenas. Nem sequer aguardes, fica em silêncio e só. O mundo apresentar-se-á perante ti para ser desmascarado, não poderá fazer outra coisa, contorcer-se-á, em êxtase, aos teus pés.»

Franz Kafka (1883-1924)

domingo, 1 de novembro de 2009

é meia-noite no fim do céu #1



«O deus estranho deteve-se ao fundo da grande escadaria e escutou. Colmilhos Brancos parecia morto, tão imóvel estava, enquanto observava e esperava. Aquelas escadas conduziam aos aposentos do seu deus e aos de todos os entes que lhe eram queridos. Por isso o pêlo eriçou-se-lhe, mas ele esperou. O pé do deus estranho ergueu-se. Começava a subir»

Jack London, "Colmilhos Brancos", Civilização Editora, 1969