quinta-feira, 31 de maio de 2012
quarta-feira, 30 de maio de 2012
Ela tem os teus olhos #3
«Não é por acaso que a televisão pôde ser controlada por um conglomerado de comerciais. Nem é por acaso que foi usada para recriar seres humanos em novas formas, adaptadas aos ambientes artificiais e comerciais. Uma conspiração de factores tecnológicos e económicos levou inevitavelmente a essa situação, continuando a fazê-lo.»
Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999
terça-feira, 29 de maio de 2012
A vida não é um sonho #19
«- A minha ingenuidade consiste em não ter vergonha de si. Não só não me envergonho diante de si como não quero envergonhar-me, precisamente diante de si, Aliocha… Por que não lhe tenho respeito? Gosto muito de si, mas não lhe tenho respeito. Se lhe tivesse respeito, não poderia falar consigo sem ter vergonha, não é verdade?
- É verdade.
- Acredita que não tenho vergonha de si?
- Não, não acredito.
Lisa voltou a rir-se; falava depressa.
- Mandei confeitos ao seu irmão Dmítri Fiódorovitch. O Aliocha permitiu, tão depressa, que não o amasse.
- Para que me chamou, Lise?
- Quero informá-lo de um desejo que tenho. Quero que alguém me martirize: se case comigo e, depois, me martirize, me engane, me abandone. Não quero ser feliz!»
Fiódor Dostoievski, "Os Irmãos Karamázov" (Livro 11;3), Editorial Presença, 2002
segunda-feira, 28 de maio de 2012
domingo, 27 de maio de 2012
quero outra noite no fim do dia #8
«Lado a lado, com o desespero, nascia nele a esperança de que, sozinho, através desse perigoso regresso, conseguisse voltar a ser um homem desejado. Em toda essa caminhada, sentia-se um homem feliz. Se alguém lhe tivesse perguntado se o que o fazia feliz era a esperança ou a saudade, ele não saberia responder. Nas almas de muitas pessoas, a tristeza gera maior alegria do que o prazer.
As mais preciosas de todas as lágrimas que engolimos são as que choramos sobre nós próprios.»
Joseph Roth, "Fuga sem fim", Publicações Dom Quixote, 1988
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sábado, 26 de maio de 2012
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Imediatamente embora pouco a pouco #20
«Descia Mercatore umas pequenas escadas quando deparou com o filósofo, pobremente vestido, sentado no chão, contra a parede, a comer lentilhas.
Arrogante, mais do que era seu costume, cheio de vaidade pela riqueza que ostentava, e pelo estômago farto, disse, para Diógenes:
- Se tivesses aprendido a bajular o rei, não precisavas de comer lentilhas.
E riu-se depois, troçando da pobreza evidenciada por Diógenes.
O filósofo, no entanto, olhou-o ainda com maior arrogância e altivez. Já tivera à sua frente Alexandre, o Grande, quem era este, agora? Um simples homem rico?
Diógenes respondeu. À letra:
- E tu – disse o filósofo – se tivesses aprendido a comer lentilhas, não precisavas de bajular o rei.»
Gonçalo M. Tavares, "Histórias Falsas", Campo das Letras 2005
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quinta-feira, 24 de maio de 2012
quarta-feira, 23 de maio de 2012
Toda a humilhação leva à morte #14
«É difícil percorrer o fio de uma navalha; tão penoso, dizem os sábios, como o caminho da Salvação.»
Katha-Upanishad
terça-feira, 22 de maio de 2012
espécie de oração particular #16
«Há tanta coisa a querer ser a minha causa! A começar pela boa causa,
depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade,
do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do
meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e
milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha
causa seja a causa de mim mesmo! “Que vergonha, a deste egoísmo que só pensa em si!”
Por isso: nada de causas que não sejam única e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão que a minha causa deveria, então, ao menos ser a “boa causa”. Qual bom, qual mau! Eu próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa fazem para mim qualquer sentido.
O divino é a causa de Deus, o humano a causa “do homem”. A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim… única, tal como eu.
Para mim, nada está acima de mim!»
Max Stirner, "O Único e a sua Propriedade", Antígona, 2004
Por isso: nada de causas que não sejam única e exclusivamente a minha causa! Vocês dirão que a minha causa deveria, então, ao menos ser a “boa causa”. Qual bom, qual mau! Eu próprio sou a minha causa, e eu não sou nem bom nem mau. Nem uma nem outra coisa fazem para mim qualquer sentido.
O divino é a causa de Deus, o humano a causa “do homem”. A minha causa não é nem o divino nem o humano, não é o verdadeiro, o bom, o justo, o livre, etc., mas exclusivamente o que é meu. E esta não é uma causa universal, mas sim… única, tal como eu.
Para mim, nada está acima de mim!»
Max Stirner, "O Único e a sua Propriedade", Antígona, 2004
segunda-feira, 21 de maio de 2012
Retrato de Família #19
T. S. E. Karamazov (1888-1965)
«No ponto quieto do mundo em rotação. Nem carne nem sem carne;
Nem desde nem para; no ponto quieto, aí a dança está,
Mas nem paragem nem movimento. E não lhe chamem fixidez,
Onde o passado e futuro se juntam. Nem movimento desde
nem para,
Nem ascensão nem declínio. A não ser pelo ponto, o ponto
quieto,
Não haveria dança, e há apenas a dança.»
domingo, 20 de maio de 2012
sábado, 19 de maio de 2012
diário dos mesmos pesares #15
«Lilith pegou no veneno e sacudiu-o. Como se faz a um lençol coberto de migalhas.
Pela boca se morre mais do que pelo tacto. No caso do veneno.
Mas a morte é uma função do tacto, é um efeito que toca. Não é saboreado, ou cheirado, ou visto. A morte não é algo que entre pelos olhos como a cor ou a forma de uma coisa. A morte toca. Morrer-se porque se tem o sentido do tacto. Poderemos não ter todos os outros sentidos, mas possuindo o tacto somos mortais.
Só é imortal o que não pode ser tocado.
Só é mortal o que pode ser tocado.
Mas, repara: o passado não pode ser tocado. Experimenta tocar em algo que sucedeu ontem ou há seis séculos. O passado é intocável, é imortal.
Como já acabou, não acaba. Que estranho, dirás.
Mas a morte vem em diferentes estados de matéria. A morte poderá surgir no estado gasoso; no estado líquido (água envenenada); ou no estado sólido: um sólido mortal (faca, bala)
Como se a morte tivesse diferentes temperaturas.
Como se a morte fosse uma substância que tolerasse grandes variações de temperatura. No grande frio e no grande calor: prossegue.
Mas num dia frio, pede-se que a morte venha a temperaturas altas. Para compensar, alguém dirá.»
Gonçalo M. Tavares, "Breves Notas sobre as Ligações (Llansol, Molder, Zambrano)", Relógio d'Água, 2009
sexta-feira, 18 de maio de 2012
Teoria da Conspiração #33 (ou a Inocência que embala o Berço)
«Perante o mundo, o indiferente não é nem ignorante nem hostil. A tua intenção não é redescobrir as sãs alegrias do analfabetismo, mas, lendo, não conceder algum privilégio às tuas leituras. A tua intenção não é andares nu, é estares vestido sem que isso implique necessariamente requinte ou desleixo; a tua intenção não é deixares-te morrer de fome, mas apenas alimentar-te. Não que queiras exactamente levar a cabo essas acções com toda a inocência, porque a inocência é um termo muito forte: somente, simplesmente, se é que esse "simplesmente" pode ter algum sentido, deixá-las num terreno neutro, evidente, desprovido de qualquer valor, e não, de forma nenhuma, funcional, porque o funcional é o pior dos valores, o mais subtil, o mais comprometedor, mas patente, factual, irredutível; que não haja mais nada a dizer senão: lês, estás vestido, comes, dormes, andas, que sejam acções, gestos, mas não provas, não moedas de troca: o teu vestuário, a tua comida, as tuas leituras deixarão de falar por ti, deixarás de te armar em esperto com eles. Não lhes confiarás a esgotante, a impossível, a mortal tarefa de te representarem.»
Georges Perec, "Um Homem que dorme", Editorial Presença, 1991
quinta-feira, 17 de maio de 2012
a temperatura do corpo #15
«Primeiro ele é uma coisa estranha esquisita, a gente põe-se a descobri-lo peça a peça com estupefacção. Os pés, as mãos, a caca - que coisa. E o chichi e o instrumento de o produzir. E os ruídos nem sempre com propósito mas perfeitamente legítimos, se o contexto está de acordo. Depois há a organização de todas as suas peças para uma harmonia do conjunto, umas mudam-se, outras crescem ou diminuem, é assim. Um corpo. É a altura de nos revermos nele, querida, cheios de glorificação interior. A gente saúda-o como quem bate uma palmada no pescoço de um cavalo e parte com ele para a vida. E então, é curioso, então ele não existe. Então quem existe é o mundo e nós, para o mundo existir. De nós à vida há um vidro muito puro, muito límpido e o corpo é o vidro. Vai levar tempo que ele rache e crie lixo para existir, mas por enquanto não. Por enquanto é só a necessidade e a evidência de existir como os deuses e as pedras, antes de as racharem para calcetarem as ruas. Por enquanto há o milagre sem milagre nenhum. Por enquanto há a eternidade de um relógio sem ponteiros.»
Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990
quarta-feira, 16 de maio de 2012
A vida não é um sonho #18
«Como era meu propósito, tinha chegado mais cedo à porta do meu escritório. Pus-me à escuta um instante. Estava tudo calmo. Deve ter ido embora. Experimentei a maçaneta. A porta estava fechada. Sim, o meu procedimento actuara como por um encanto: ele devia ter mesmo desaparecido. No entanto, uma certa melancolia misturava-se com isto: tinha pena do meu brilhante êxito. Remexia debaixo do capacho da porta, à procura da chave que Bartleby lá deveria ter deixado, quando acidentalmente o meu joelho bateu contra a almofada da porta, produzindo um som de quem bate, e como resposta veio de dentro uma voz.
- Ainda não. Estou ocupado.
Era Bartleby.»
Herman Melville, "Bartleby", Assírio & Alvim, 1988
terça-feira, 15 de maio de 2012
Dicionário das causalidades #12
Milímetros
«Queres encontrar o homem mais feliz do mundo e estás no México, no Zócalo, praça central, a ver que a catedral se enterra aos poucos, milímetros, ano após anos é enterrada como um vivo que enquanto caminha se afunda. Poucos milímetros a cada ano somos nós aos poucos enterrados, só que não o notamos porque é no tempo, não no espaço.»
Gonçalo M. Tavares, "Canções Mexicanas", Relógio d'Água, 2012
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Imediatamente embora pouco a pouco #19
«Estará a senhora entre aqueles nossos contemporâneos que ganharam o hábito, ao que parece difícil de corrigir, de transgredir os limites do respeito mútuo que a própria razão prescreve, e de ignorar zelosamente o tacto que o pensamento mais comum ou mais elevado veementemente nos recomenda?»
Robert Walser, "Histórias de Amor", Relógio d'Água, 2008
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Imediatamente embora pouco a pouco
domingo, 13 de maio de 2012
sábado, 12 de maio de 2012
sexta-feira, 11 de maio de 2012
quinta-feira, 10 de maio de 2012
quarta-feira, 9 de maio de 2012
terça-feira, 8 de maio de 2012
Não respire... (ou leituras em apneia) #5
«Um dia, quando voltávamos do trabalho, vimos três forcas montadas no local da chamada, três corvos pretos. Chamada. Os SS à nossa volta, as metralhadoras assestadas - a cerimónia tradicional. Três condenados acorrentados - e, no meio deles, o pequeno pipel, o anjo de olhos tristes.
Os SS pareciam estar mais preocupados, mais inquietos do que era costume. Enforcar uma criança diante de milhares de espectadores não era coisa de pouca monta. O chefe do campo leu o veredicto. Todos os olhos se tinham fixado na criança. Estava lívido, quase calmo, mordendo os lábios. A sombra da forca cobria-o por completo.
O Lagerkapo, desta vez, recusou ser o carrasco. Três SS substituíram-no.
Os três condenados subiram ao mesmo tempo para cima das cadeiras. Os três pescoços foram introduzidos ao mesmo tempo nos nós corredios.
- Viva a liberdade! - gritaram os dois adultos.
O pequeno, esse mantinha-se, calado.
- Onde está o Bom Deus, onde está Ele? - perguntou alguém atrás de mim.
A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras oscilaram.
Silêncio absoluto no campo. No horizonte, o sol punha-se.
- Tirem os chapéus! - berrou o chefe do campo. A sua voz era rouca. Quanto a nós, nós chorávamos.
- Tapem a cabeça!
Depois começou o desfile. Os dois adultos já estavam mortos. As suas línguas pendiam, inchadas, azuladas. Mas a terceira corda não estava imóvel: tão leve, a criança ainda estava viva...
Assim ficou durante mais meia hora, a lutar entre a vida e a morte, agonizando aos nossos olhos. E nós tínhamos de o encarar bem de frente. Ainda estava vivo quando passei diante dele. A sua língua ainda estava vermelha, os seus olhos ainda não estavam sem vida.
Atrás de mim, ouvi o mesmo homem a perguntar:
- Onde é que Deus está, então?
E eu sentia dentro de mim uma voz que lhe respondia:
- Onde é que ele está? Ei-lo - está aqui pendurado nesta forca...
Naquela noite, a sopa sabia a cadáver.»
Elie Wiesel, "Noite", Texto Editora, 2003
Pode respirar.
segunda-feira, 7 de maio de 2012
domingo, 6 de maio de 2012
sábado, 5 de maio de 2012
electrocardioTrama #11 (ou a actividade emergente do eu)
«Se é difícil que cada um escolha o seu eu, é porque, assim, o isolamento absoluto se torna idêntico à mais profunda das continuidades, porquanto a escolha do seu próprio eu exclui definitivamente a possibilidade de se tornar outro, mais ainda: de se imaginar outro.»
«Enquanto a paixão da liberdade acorda nele (e acorda na escolha porque está implicada nessa mesma escolha), ele próprio escolhe o seu eu e luta pela sua posse tanto como pela sua salvação, e é mesmo a sua salvação.»
«Enquanto a paixão da liberdade acorda nele (e acorda na escolha porque está implicada nessa mesma escolha), ele próprio escolhe o seu eu e luta pela sua posse tanto como pela sua salvação, e é mesmo a sua salvação.»
sexta-feira, 4 de maio de 2012
a temperatura do corpo #14
«... um dia a crença partirá. A razão partirá também. E eu desaparecerei do vosso corpo. Só o homem ficará finalmente sozinho sobre a Terra. Nenhum de nós imagina o esplendor que isso é.»
Maria Gabriela Llansol, «Está de volta o medo». JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº 625, 28 de Setembro de 1994
quinta-feira, 3 de maio de 2012
quarta-feira, 2 de maio de 2012
terça-feira, 1 de maio de 2012
diário dos mesmos pesares #14
Sofremos com nojo a pertença em nós
inculcada de uma geração, as suas taras
vindas de longe, modos diferentes
de se ser igual. Com uma raiva triste,
vemo-los foder, procriar, indo aos poucos
definhando, esperados que são
por pós-modernos jazigos.
Não há nada a fazer,
nenhuma palavra nos salva.
Somos sempre contemporâneos da merda.
Manuel de Freitas, "A última Porta (Antologia)", Assírio e Alvim, 2010
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