«Zumbe uma mosca, incerta e mínima...
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de
ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de
que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica,
fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu
compreender-me, embalado de ópios, adormece...
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos
nossos sonhos...
Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da
vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que
se quer e menos do que se espera.
Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece
de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos...
Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e
morto de nossa Imperfeição...»
Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego", Relógio D'Água, 2008
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