quinta-feira, 6 de setembro de 2012
A vida não é um sonho #22
«A relação que um homem tem com a sua mulher, por mais perfeita que seja, torna-se, com o tempo, tão rotineira como a que mantém com a sua cidade. Rotineira no sentido de que a atenção vai afrouxando e ele acaba por não conhecer, do objecto que lhe está próximo, mais do que certos pontos de referência. Tal como ao fim de muitos anos a morar numa cidade já não reparamos nas praças, nas avenidas, nos monumentos, excepto quando o acaso ou o dever no-los apontam (Ah, mas aqui havia árvores; oh, repara que belo edifício, etc.), também às vezes descobrimos que a nossa mulher tem seios ou olhos bonitos ou quadris tentadores. Mas são momentos esporádicos e seguramente anormais, uma vez que exigem de nós uma nova abordagem ou um novo ajuste do diafragma da nossa consciência, o que implica um esforço e, por essa mesma razão, encontra em nós resistência. É por esse motivo que a vida conjugal, quando não há filhos nem interesses comuns nem afinidades intelectuais nem, sobretudo, compatibilidades temperamentais ou sexuais, acaba por se transformar numa ficção, num companheirismo às cegas, tão fantasmagórico como o itinerário mil vezes percorrido numa cidade, em que nos limitamos a ser conduzidos pelos nossos reflexos. A mulher percebe isso e, uma vez por outra, tenta fazer-se notar através de um novo penteado, de um novo detalhe no vestuário ou de um convite para que a sigam pelo bairro não visitado e censurado do seu corpo. O homem também o percebe e impõe-se, de vez em quando, uma mudança de aparência (caso patológico do travesti). Mas os disfarces também cansam e não passam de disfarces.»
Julio Ramón Ribeyro, "Prosas Apátridas", Edições Ahab, 2011
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