quinta-feira, 24 de abril de 2014

espécie de oração particular #36




«Meu mestre e meu guia!   
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,   
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,   
Natural como um dia mostrando tudo,   
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.   
Meu coração não aprendeu nada.   
Meu coração não é nada,   
Meu coração está perdido.   
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.   
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!   
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,   
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,   
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,   
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.   
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento  
Pela indiferença de toda a vila.   
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,   
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.   
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,   
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.   
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,   
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?   
Por que é que me chamaste para o alto dos montes  
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?   
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela  
Como quem está carregado de ouro num deserto,   
Ou canta com voz divina entre ruínas?   
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,   
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?» 

Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos", Ática, 1993

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