quarta-feira, 30 de abril de 2014

a temperatura do corpo #37



«É difícil viver aqui, respirar, mexer os dedos ao pé da respiração, olhar junto ao movimento do corpo, ter um corpo no meio da sombra, um nome com a sua luz própria na dilatação obscura dos nomes. Contudo é preciso viver, tem de se andar, para trás ou para frente, porque há o fermento no corpo, o sangue, a irradiação dita pernas e braços, é-se bípede, quadrúpede, miriápode – vem-se dar sempre a este sítio que devorou a rosa cardeal.» 

Herberto Helder, ”Retrato em Movimento”, Editora Ulisseia, 1967

terça-feira, 29 de abril de 2014

Ela tem os teus olhos #11



«Os processos de raciocínio de nada nos podem valer. Mesmo pressupondo que reflectimos enquanto vemos televisão, isso não impede a passagem das imagens. Entram no nosso cérebro. Permanecem para sempre. Não podemos afirmar com exatidão quais as nossas imagens ou as oriundas de locas distantes. Imaginação e realidade fundem-se. Perdemos o domínio da nossa própria mente.» 

Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Teoria da Conspiração #50 (ou o Ponto Vazio da Jaula)



Não existe uma rigorosa distinção entre símbolo e alegoria, na medida em que a alegoria é a própria simbologia em decomposição, morta por hipertrofia. Todavia, nessa decomposição do símbolo liberta-se um poder imenso, o frio sentido algébrico, o que permite criar com soberano arbítrio as convenções, impor que qualquer coisa possa substituir qualquer outra coisa. «A alegoria seiscentista não é convenção da expressão, mas expressão da convenção»: assim se cria também o mito da escrita, perene festim de morte, entregue à «volúpia com que o significado domina, como um tenebroso sultão, no harém das coisas». A alegoria incontrolável, agora subtraída a uma ordem viva do sentido, mera obrigação de procurar imagens e de ir elaborando sempre o seu significado através de lacerações combinatórias, provoca acima de tudo o extravasar das próprias imagens: tal como os objectos invadem obsessivamente a cena do teatro barroco, até se converterem nos verdadeiros protagonistas, também as figuras irrompem como ameaças nos livros de emblemas, comemorando a cisão progrediente entre imagem e significado. Quem é que, ao abrir Emblematum Liber de Alciato e ao ver uma mão cortada com um olho na palma, pousada em pleno céu, numa paisagem campestre, poderá pensar na prudência, como pretendia o texto do emblema? Reconhecerá, pelo contrário, a vivisecção do corpo humano, uma muda alusão ao estado de natureza como obra de alvenaria e a insconsciente instauração do fragmento como categoria dominante do estético. Com a acumulação destes materiais prepara-se a ribalta do moderno. A história de então prefigura a verdadeira história dos nossos dias: aquelas imagens, então saídas para o mundo, como feras saídas da jaula, continuam a vaguear pelo mundo. Kafka descreveu-as: «Leopardos irrompem pelo templo e esvaziam os vasos dos sacrifícios; isso repete-se sempre; no fim, pode prever-se, e torna-se uma parte da cerimónia». Alegoricamente, o escritor é aquele que assiste a essa cena.

Roberto Calasso, "Os Quarenta e Nove Degraus", Cotovia, 1998

sábado, 26 de abril de 2014

Inaugurar sentimentos, o amor por vir #23



«O drama que existiu entre os dois ainda não acabou: ele continua a vir todas as noites a este café para a ver, para reabrir a velha ferida, talvez para saber quem é que a leva para casa esta noite; e ela vem todas as noites a este café se calhar de propósito para o fazer sofrer, ou talvez esperando que o hábito de sofrer se torne para ele um hábito como outro qualquer, adquirindo o sabor do nada que há anos lhe empasta a boca e a vida.»

Italo Calvino, "Se Numa Noite de Inverno um Viajante", Editorial Teorema, 2009

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Chefe, precisamos de mentiras novas #25



«Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.»

Jorge de Sena, "Poesia 2. Fidelidade, Metamorfoses, seguidas de Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, Arte de música", Moraes Editores, 1978


quinta-feira, 24 de abril de 2014

espécie de oração particular #36




«Meu mestre e meu guia!   
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,   
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,   
Natural como um dia mostrando tudo,   
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.   
Meu coração não aprendeu nada.   
Meu coração não é nada,   
Meu coração está perdido.   
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.   
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!   
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,   
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,   
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,   
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.   
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento  
Pela indiferença de toda a vila.   
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,   
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.   
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,   
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.   
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,   
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?   
Por que é que me chamaste para o alto dos montes  
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?   
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela  
Como quem está carregado de ouro num deserto,   
Ou canta com voz divina entre ruínas?   
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,   
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?» 

Fernando Pessoa, "Poesias de Álvaro de Campos", Ática, 1993

terça-feira, 22 de abril de 2014

quero outra noite no fim do dia #22



«todo o santo dia bateram à porta. não abri, não me apetecia ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa. o vento deve estar de feição. a ressonância das vagas contra os rochedos sobressaltam-me. desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer, que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado, nem me parece que esteja feliz. escrevo com um único fim: salvar o dia.» 

Al Berto, “O medo”, Assírio & Alvim, 1997

segunda-feira, 21 de abril de 2014

diário dos mesmos pesares #37

«No lance do verbo jogo,
Mas, se vigio o meu lado, 
A boca sabe-me a fogo 
Do sentido inesperado.»


«Flato de voz é morte irreparável, 
Só Verbo é vida: 
Aquele que tenta o inefável 
Fala de voz proibida.»

Vitorino Nemésio, "O Verbo e a Morte", Moraes Editora, 1959

sábado, 19 de abril de 2014

Corpus Christi Carol #9



«Ainda que Ele me mate, eu confiarei nele.»
Jó 13:15

sexta-feira, 18 de abril de 2014

prove que não é um robô #10




«42. Só serão incriminados aqueles que injustamente vituperarem e oprimirem os humanos, na terra; esses sofrerão um doloroso castigo.»

42ª Surata – Ax Xura

terça-feira, 15 de abril de 2014

o poeta sabe menos que o poema #17



«E ele é o olho louco da quarta pessoa do singular
da qual ninguém fala
e ele é a voz da quarta pessoa do singular
pela qual ninguém fala
e que todavia existe»

Lawrence Ferlinghetti


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Perguntas Abandonadas #39



Como lidar com algo que existe, mas que eu não reconheço?
E tu reconheces aquilo que És ou simplesmente existes? Reconheces a sociedade do espectáculo na qual estás inserido, ou simplesmente segues o padrão, com medo de ficares alienado e à margem? És ou Tens? Trabalhas a alma ou concentras a tua atenção em melhorares o papel que assumes no dia-a-dia?

Oliver Sacks, “O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu”, Relógio D'Água, 1990

domingo, 13 de abril de 2014

ninguém é filho das ervas #28



«Se querem saber a verdade, não sei o que hei-de pensar. Lamento ter contado isto a tanta gente. O que sei é que tenho como que saudades de toda a gente de quem falei.»

J. D. Salinger 

sábado, 12 de abril de 2014

o Mal-estar da Civilização #42



«Todos somos responsáveis por tudo perante todos»
                                                                                                 Fiódor Dostoiévski

quinta-feira, 10 de abril de 2014

se os mortos falassem #5



«87
Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
Por tornar ao trabalho, mais folgado.» 

Luiz Vaz de Camões, “Os Lusíadas” - Canto VII, INCM, 2005

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Orelhas de Elefante #42



In the dark of night I might
Be able to make myself think
That I'm still a younger man
But when the light of day shines down
There's no way to get around it
I am not a younger man
I keep defeating my own self
And keep repeating yesterday
I can't keep defeating myself
I can't repeating the mistakes of my youth

- "Mistakes of My Youth"

Meaning to find meaning in the most meaningless of times
Believing I believe in something beyond nickels and dimes

And I opened up my heart and said "This much I'll allow:

All who enter welcome in"

And I thought I'd have some answers by now

- "Answers"
Too many years getting my way
Never let anyone have their say
How could I think it would work out
Never a question, never a doubt
 

- "Gentlemen's Choice"
If I could do just one thing
Set the clock back many years ago

I'd teach that motherfucker that raised you

How to treat you right

- "Series of Misunderstandings"


terça-feira, 8 de abril de 2014

Chefe, precisamos de mentiras novas #24



«Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.» 

Alexandra Lucas Coelho, prémio APE, 2014

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Por vocações de Leitura #12 (Polaroid Lovers)

Bret Easton Ellis

Paul Auster

Michael Cunningham

David Foster Wallace

domingo, 6 de abril de 2014

"Decerto já vos chegaram aos ouvidos boatos" #12



«Também queriam o quê? Telenovela era?»

João César Monteiro, 2000

sábado, 5 de abril de 2014

a temperatura do corpo #36



«Grandes ventos assolam-se o rosto, as estações da idade, a denúncia do corpo.

Grandes vagas esculpem-me as mãos vazias, finalmente vazias e brancas, contraditória sedução matinal revelada pela argúcia do orvalho das laranjeiras;

Grandes vozes se levantam nas minhas costas, as vozes passadas e as vozes a haver, as vozes iradas e lentas, inevitáveis e insondáveis,
         e todas as mundanas, bichos e plantas, ventos e brisas, se acomodam nos mistérios, nas partituras do sal e dos esquecimentos do sal e do esquecimento;

Como soletrar a memória, os belos fragmentos aportados pelas vagas?»

Jorge Fallorca, "A Cicatriz do Ar", Edição de Autor, 2009

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ouvido no estrangeiro #9



«All other things must change too. 
The seasons are no longer what they once were, 
But it is the nature of things to be seen only once, 
As they happen along, bumping into other things, getting along 
Somehow. That's where Orpheus made his mistake»

John Ashbery, "Houseboat Days", Farrar, Straus and Giroux, 1999

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Recomposições de Metades #10



«O homem divide-se em dois; é ao mesmo tempo invisível e visível, homem interior e homem exterior. Mas existe um laço entre a interioridade oculta do homem e a sua exterioridade manifesta. Os movimentos das paixões que habitam o homem interior são marcados à superfície do corpo»

Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche, “História do Rosto”, Editorial Teorema, 1995