domingo, 2 de dezembro de 2012

K, o elemento estranho da tabela literária #4


«Eu era rígido e frio, eu era uma ponte, eu estava sobre uma ravina, Os meus dedos dos pés num lado, os meus dedos das mãos no outro, seguros com toda a força à terra solta. As bordas do meu casaco dançavam no vento a meu lado. Bem lá em baixo, revolteava o curso de água gelada. Nenhum turista se atrevia a vir cá acima, a ponte não vinha sequer em nenhum mapa. E assim eu ficava estendido e esperava. Uma vez lançada, nenhuma ponte, a menos que caia, deixa de ser ponte.
Certa tarde - a primeira ou a milésima, não sei - tinha as ideias em perpétua confusão e movimento... mas foi numa tarde de Verão, quando o troar da corrente se tornara mais profundo, que eu ouvi um passo humano! Na minha direcção, na minha! põe-te direita, ponte, preparem-se, vigas, para segurar o passageiro que vos foi confiado. Se os seus passos forem incertos, segurem-nos discretamente, mas se ele escorregar mostrem do que são feitos e, como um deus das montanhas, empurrem-no para terra.
Ele chegou, testou-me com a ponta de ferro do bordão e levantou-me as asas do casaco, pondo-as no sítio. Mergulhou depois a ponta do seu bordão no meu cabelo farto e deixou-se ficar por ali a olhar esgazeado em volta, por certo esquecido de mim. Foi então que - estando eu com ele em pensamentos, sobre montanhas e vales - saltou a pés juntos do meio do meu corpo. Fiquei a tremer de dor, sem perceber o que se tinha passado. Quem era ele? Uma criança? Um viajante? Um suicida? Voltei-me então para o ver. Onde é que já se viu uma ponte a voltar-se! Ainda não me tinha voltado completamente e já começava a cair, caí e, em poucos segundos, fui desfeito em pedaços pelas rochas duras que sempre me haviam olhado pacificamente, da corrente, lá em baixo.»

Franz Kafka, "Contos", Cavalo de Ferro, 2004

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