terça-feira, 31 de maio de 2011

a poesia não me interessa #26



Igual ao deuses é aquele que,
à tua frente, se senta a escutar
as tuas palavras doces e o teu riso
encantador.

É isto que provoca um tumulto
no meu peito. Ao ver-te apenas,
a minha voz treme, a minha língua
paralisa-se.

Logo um delicado fogo percorre
os meus membros; os olhos ficam
cegos e os meus ouvidos
ressoam.

O suor invade o meu corpo; percorre-me
uma ternura. Empalideço mais
que a erva seca e vejo aproximar-se
a morte.

William Carlos Williams, "Paterson", Relógio d'Água, 1998

domingo, 29 de maio de 2011

iridescência lume



©Reggio,Godfrey;1982

sábado, 28 de maio de 2011

Orelhas de Elefante #19




Porque há musicas de outras dimensões.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

a temperatura do corpo #8



«Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.»

Heiner Müller, "O Anjo do Desespero", Relógio d'Água, 1997

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Perguntas Abandonadas #12

«Aonde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faz-mo saber, se tens inteligência.»

(Job 38:4)

Bíblia Ilustrada, "Vol. 4, 1º Crónicas - Job", Assírio & Alvim, 2007

quarta-feira, 25 de maio de 2011

dedicatória #12*



* dedicada a todos os amantes deste film noir.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Por vocações de Leitura #3


Katharina Böll

Sofia Gaarder

Guy Bradbury

segunda-feira, 23 de maio de 2011

domingo, 22 de maio de 2011

Não respire... (ou leituras em apneia) #3



«Pense em mim por vezes como alguém a quem a lição da vida foi contada muito asperamente, mas que a escutou com coragem; como alguém que de facto o amava, mas que se odiava a si mesma tão profundamente que o seu amor lhe era odioso; como alguém que o mandou embora apesar de querer ficar consigo para sempre; que não tinha melhor esperança do que esquecê-lo, nem medo maior do que ser esquecida.»

in "Olalla"

Robert Louis Stevenson, "O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde e outros contos", Assírio & Alvim, 2007

Pode respirar.

sábado, 21 de maio de 2011

Teoria da Conspiração #25 (ou o Tempo vs. Alfaiate)



«Virem de vez em quando do avesso os forros das algibeiras, porque nessa poeira de coisas, nessa penugem e cotão, é onde se criam e sustentam todos os micróbios. A putrefacção de muita gente, a gangrena da suas vidas, começou por esses algodões obscuros que não se sabe de onde vêm, por esse restos e migalhas misteriosos... Executem como autênticos cirurgiões a operação de arrancar aos vossos bolsos essas tumefacções e esse pus.
São esquírolas do passado, condensações de tempo, detritos do que passou, resultados de pássaros invisíveis que deixam cair essas coisas todas das árvores do tempo.
A higiene dos bolsos dos casacos, das calças, dos coletes, é uma das higienes mais descuradas.
Por mim, a primeira coisa que faço ao meus doentes é descarregar-lhes os bolsos, arrancar esses vermes colados às comissuras dos forros, tudo isso que cresceu na solidão e é concentração do tempo que morreu, final de horas e minutos que caíram mortos nas algibeiras como em rede de caçador.»

Ramon Gómez de la Serna, "O Médico Inverosímil", Antígona, 1998.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

a vida não é um sonho #11



«Maria ensinou-me - naquela primeira, estranha noite e nos dias seguintes - muita coisa, não apenas jogos desconhecidos e maravilhosos, êxtases dos sentidos, mas também uma nova compreensão, novas perspectivas, um novo amor. O mundo dos dancings e centros de diversão, dos cinemas, dos bares e salões de chá de hotel, que para mim, eremita e esteta, tinham ainda algo de inferior, proibido e degradante, era para a Maria, Hermínia e as suas companheiras pura e simplesmente o mundo, o único mundo que havia; não era bom nem mau, nem admirável nem detestável, mas nele desabrochava e floria a sua vida breve e árida, nele se sentiam aclimatadas e experimentadas.»

Hermann Hesse, "O Lobo das Estepes", Ed. Afrontamento, 1982

quinta-feira, 19 de maio de 2011

quero outra noite no fim do dia #4



«O tempo é a qualidade dos tempos (porque nos foi dito: - "Fazei isto em memória de mim").»

Maria Gabriela Llansol

quarta-feira, 18 de maio de 2011

alegações finais #6



«- Acabou! – disse alguém por cima dele.
Ouviu estas palavras e repetiu-as na sua alma. “Acabou a morte – disse para si mesmo – Já não existe.”
Sorveu o ar, deteve-se a meio da inspiração, esticou-se e morreu.»

Lev Tolstoi, "A Morte de Ivan Ilitch", Relógio d'Água, 2007

terça-feira, 17 de maio de 2011

diário dos mesmos pesares #8



«Até aqui nunca lho expliquei, não pense que por deslealdade, mas simplesmente não vamos pôr-nos a explicar às pessoas que de vez em quando vomitamos um coelhito. Como sempre me aconteceu estando sozinho, guardava o facto como se guardam tantas referências do que acontece (ou fazemos acontecer) absolutamente em privado. Não me critique, Andrée, não me critique. Acontece que, de vez em quando, vomito um coelhito. Não é motivo para não viver em qualquer casa, não é motivo para ter vergonha e isolar-me e andar calado.»

in "Carta a Uma Rapariga em Paris"

Julio Cortázar, "Bestiário", Publicações Dom Quixote, 1986

segunda-feira, 16 de maio de 2011

o combate com o demónio #3




Heinrich von Kleist (1885–1954)


«O seu rosto mergulha assim na noite que o cobriu com a sua sombra durante trinta e quatro anos; apenas conhecemos o seu tenebroso companheiro: o demónio.»


Stefan Zweig

sábado, 14 de maio de 2011

a poesia não me interessa #25



Fala também tu,
fala em último lugar,
diz a tua sentença.

Fala —
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua sentença igualmente o sentido:
dá-lhe a sombra.

Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanta
quanta exista à tua volta repartida entre
a meia-noite e o meio-dia e a meia-noite.

Olha em redor:
como tudo revive à tua volta! —
Pela morte! Revive!
Fala verdade quem diz sombra.

Mas agora reduz o lugar onde te encontras:
Para onde agora, oh despido de sombra, para onde?

Sobe. Tacteia no ar.
Tornas-te cada vez mais delgado, irreconhecível, subtil!
Mais subtil: um fio,
por onde a estrela quer descer:
para em baixo nadar, em baixo,
onde pode ver-se a cintilar: na ondulação
das palavras errantes.

Paul Celan, "De Limiar em Limiar"

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ela tem os teus olhos #2



«Ao passarmos a viver em ambientes completamente artificiais, rompeu-se o nosso contacto directo com o planeta, alterando-se o nosso conhecimento do mesmo. Desligados, como astronautas flutuando no espaço, não podemos agora distinguir o alto do baixo ou a verdade da ficção. Estas condições favorecem a implantação de realidades arbitrárias.»

Jerry Mander, "Quatro Argumentos Para Acabar com a Televisão", Antígona, 1999

quarta-feira, 11 de maio de 2011

o Mal-estar da Civilização #21



«Não esquecer Lévi-Strauss: a saber, que a "civilização" não é um grau e que não há hierarquias "naturais" a postular desse ponto de vista, mas também que a humanidade é una, pois deriva de um fundo antropológico comum. Por outras palavras, que falar de um "ataque contra a Civilização" não quer dizer nada, não mais, em todo o caso, do que a pretensão de classificar os povos em função da sua adesão a uma fé, muçulmana ou outra. Talvez seja conveniente precisar aqui que o suprematismo não é só "branco": se há quem, nas sociedades muçulmanas, se alie ao islamismo radical de um ponto de vista defensivo, ou seja, por causa da percepção de uma ameaça, a retórica dos chefes de guerra desse islamismo radical pretende-se ofensiva, e o seu proselitismo conquistador justifica-se pela inferiorizarão da civilização "decadente" do Outro.»

Samir Kassir, "Considerações Sobre a Desgraça Árabe", Cotovia, 2006

terça-feira, 10 de maio de 2011

Teoria da Conspiração #24 (ou a Lucidez que embala o Berço)



«Começa provavelmente com traumas ou tacteios a que nem sequer se é capaz de dar uma forma verbal: uma separação, uma cena de violência, uma brusca consciência da monotonia do tempo. É com a leitura de livros - não necessariamente filosóficos - que estes choques iniciais se transformam em perguntas e problemas, dão que pensar. O papel das literaturas nacionais pode aqui ser importante. Não é que se aprendam palavras, mas vive-se "a verdadeira vida que está ausente", que, precisamente, não é utópica. Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referência "ontológica" do humano ao livro que se toma como fonte de informações, ou como um "utensílio" para aprender, como um manual, quando é, na verdade, uma modalidade do nosso ser. Com efeito, ler é manter-se acima do realismo - ou da política -, da preocupação por nós mesmos, sem desembocar, contudo, nas boas intenções da nossas belas almas, nem da idealidade normativa do que "deve ser".»

Emmanuel Lévinas, "Ética e Infinito", Edições 70, 2010

segunda-feira, 9 de maio de 2011

espécie de oração particular #9



«Conhecer a sua melhor qualidade
. É necessário cultivar a qualidade mais relevante e ajudar as outras. Qualquer um triunfaria se conhecesse a sua melhor qualidade. Observe-se a maior qualidade e redobre-se a sua utilização: em alguns domina a inteligência, noutros, a coragem. A maioria violenta a sua capacidade e por isso não sobressai em nada. O que a paixão exalta com rapidez, tarde o desengana o tempo.»

Baltasar Gracián, "A Arte da Prudência", Edições Temas da Actualidade, 1994

sábado, 7 de maio de 2011

Imediatamente embora pouco a pouco #11



«Dentro de seis meses o mais tardar, ou se calhar amanhã, estarei cego. É a minha triste, triste vida que continua.
Os que me puseram no mundo hão-de pagar-mas, dizia eu comigo antigamente. Até hoje ainda não pagaram. Porém, eu agora tenho de apartar-me dos meus olhos. A sua perda definitiva há-de livrar-me de atrozes sofrimentos, é tudo o que se pode dizer. Uma manhã terei as pálpebras cheias de pus. Depois é só o tempo de fazer inutilmente algumas experiências com nitrato de prata, e acaba-se com eles. Há noves anos, a minha mãe disse-me: "Preferia que não tivesses nascido."»

Henri Michaux, "Antologia", Relógio d'Água, 1999

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Chamada a pagar no destinatário #7



«I will change my life... and I will also help you»

quinta-feira, 5 de maio de 2011

a vida não é um sonho #10



«Continuo de pé em cima da mina. Tínhamos partido esta manhã em patrulha e eu ia em último como de costume, todos passaram ao lado, mas eu senti o clique debaixo do pé e parei logo. Elas só rebentam quando se tira o pé. Atirei para os outros o que trazia nos bolsos e disse-lhes para se irem embora. Estou sozinho. Devia esperar que eles voltem, mas disse-lhes que não voltassem. Podia tentar atirar-me de barriga para o chão, mas teria horror a viver sem pernas. Fiquei apenas com o meu bloco e o lápis. Vou atirá-los para longe antes de mudar o peso para a outra perna, é que tenho mesmo que o fazer porque estou farto da guerra e estou a sentir um formigueiro.»

Boris Vian, "As Formigas", Relógio d´Água, 2004

quarta-feira, 4 de maio de 2011

electrocardioTrama #8 (ou a actividade filológica da loucura)



«Colocamos uma palavra no lugar onde começa a nossa ignorância, onde já não conseguimos ver mais longe - por exemplo a palavra "Eu", a palavra "fazer", a palavra "sofrer": trata-se talvez de linhas do horizonte do nosso conhecimento, mas não de "verdades".»

terça-feira, 3 de maio de 2011

Perguntas Abandonadas #11


«QUE FAZER, senhores? Entrar na engrenagem e, implacavelmente, ser triturado por ela, ou recusá-la, e equacionar de novo, solitariamente que fosse, o problema ou os problemas, sem outros rodeios, sem outras contemplações além das devidas à dignidade própria e à tarefa do entendimento?»

Joel Serrão (1919-2008)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Dicionário das causalidades #6




F

Falar


«Existem incompatibilidade forçadas: o literato não quer ouvir falar da sabedoria oriental; o insatisfeito que tenta atingir a sabedoria oriental não quer ouvir falar de literatura; o erudito não quer ouvir falar de experiências não livrescas; quem faz experiências não livrescas não quer ouvir falar de filologia; quem confia nas demonstrações da ciência não confia nas demonstrações da mística; quem exalta a mística sente aversão pelas pesquisas experimentais; quem se centra no moderno, vê a barbárie no passado; quem se centra no antigo vê a degeneração no presente.»


Roberto Calasso, "Os Quarenta e Nove Degraus", Cotovia, 1998

domingo, 1 de maio de 2011

Retrato de Família #16




Rainer Maria R. Karamazov (1875-1926)

«Não será tempo de estas dores antiquíssimas se tornarem
finalmente fecundas? E não será tempo de nós,
os que amamos, nos libertarmos de quem amamos, como trémulos vencedores?
De sermos como a flecha que, vencendo o arco, se solta, toda ímpeto,
passando a ser mais do que ela própria? Pois em nenhum lugar se permanece imóvel.»