«Tudo o que deres à terra, a terra devolver-te-á mil vezes, disse o homem para a menina que o seguia enquanto ele preparava os carreiros por onde a água haveria de passar. Mil, quantos são mil?, perguntou a menina, espantada no meio da horta que o homem fizera nas traseiras da igreja. O homem deixou o que estava a fazer e agachou-se até ficar à altura da menina. Abre as mãos, estica os dedos. O homem percorreu com os seus os dedos da menina abertos em leque. Imagina que de cada um destes dedinhos nasce uma menina com as mão abertas e os dedos esticados. Como eu? Como tu. As mãos do homem prolongavam as da menina. E que de cada um dos dedos dessas meninas nascem outras meninas de mãos abertas com os dedos esticados. São mil os dedos dessas meninas no dedos das meninas que tu tens nos dedos, disse o homem e sorriu. A menina não tinha a certeza de ter percebido bem mas os olhos dela brilhavam. A menina parecia feliz. Tantos! O homem endireitou-se e foi abrir a água que, rápida, percorreu certinha os carreiros todos. A terra é generosa se a tratares bem, a terra é sempre muito generosa, disse o homem. A terra dá tudo, tudo, tudo?, perguntou a menina. Tudo. Foi nesse instante que a menina decidiu o que havia de fazer.»
(Dulce Maria Cardoso - Desaparecida)
in Contos Policiais, Porto Editora, 2008
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