«671 No amor nunca os pratos da balança estão equilibrados. E como a essência do amor é etérea, quem pesa mais é quem ama menos.» Vergílio Ferreira, "Pensar", Bertrand Editora, 1992
«Estirei os braços, exultante, e apercebi-me de repente de que a minha estatura se tinha reduzido.» Robert Louis Stevenson, "O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde e outros contos", Assírio & Alvim, 2007
«- Tem-se a impressão de que cada vez que é levado a tomar uma posição, você retira-lhe a importância pela ironia ou pelo sarcasmo. - Sempre. Porque não acredito nela. - Mas em que acredita? - Em nada! A palavra "crença" é um erro também. É como a palavra "julgamento". São dados terríveis sobre os quais o mundo está baseado. Espero que, na Lua, não seja assim? - Todavia acredita em si? - Não. - Nem isso? - Não acredito na palavra "ser". O conceito ser é uma invenção humana. - Ama assim tanto as palavras? - Ah! Sim, as palavras poéticas. - Ser, é muito poético. - Não, nem por isso. É um conceito essencial que, na realidade, não existe, no qual não creio, mas muita gente crê ferrenhamente. Não se pode ter a ideia de não acreditar nas palavras "eu sou", não é? - Qual é a palavra mais poética?» Marcel Duchamp, “O Engenheiro do Tempo Perdido”, Assírio & Alvim, 2010
«Aquele que entreabre a boca por um instante que seja, esse estará talvez esquecido de que o seu corpo é todo ele feito de aves, árvores voadoras e constelações de fogo. E que desta maneira e pouco a pouco se esvaziará disso, de tudo isso.» Yves Namur, “Figuras do muito obscuro”, Cavalo de Ferro, 2005
«Muitas vezes, aceito o melhor quarto e durmo sob um dossel, outras durmo num palheiro. As pulgas não me incomodam e também não me queixo das sedas. Sou muito tolerante. Nada tenho de moralista. Sou demasiado consciente da brevidade da vida e da sua complexidade, para me dedicar a traçar linhas de demarcação a tinta vermelha.» Virginia Woolf, "As Ondas", Relógio D’Água, 1988
«Escrevo como um profissional, à linha, as palavras pouco importam, são ambíguas e inúteis. As palavras não somos nós. E tu, leitor, és um pretexto: testemunha, confidente, cúmplice, vítima ou juiz, jamais nos conheceremos, jamais saberás quem sou, onde te minto, onde chorei, onde nos podíamos ambos rir a bom rir da nossa pavorosa condição de gente morta ou gente que vai morrer.» Luiz Pacheco, "Exercícios de Estilo", Editorial Estampa, 1999
«Devemos, ao falar, ter o maior cuidado com as palavras que empregamos, pois, sendo algumas delas particularmente vulneráveis às raízes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetação que talvez chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se árida, de uma aridez idêntica à roupa que nos cobre o corpo ou à do céu, de que me esforço, sempre que dele falo, por deixar à mostra um dos agrafos mais profundos.» Luís Miguel Nava, "Poesia Completa (1979-1994)", Publicações Dom Quixote, 2002
«Sempre em direcção à terra a água procura nas ervas um coração a bater, quase tudo reduzido a pulso vegetal.» Renata Correia Botelho, "Um Circo no Nevoeiro", Averno, 2009
«Kurt vinha todas as semanas à cidade. Era engenheiro num matadouro. Este ficava na orla de uma aldeia, não muito longe da cidade. A cidade fica demasiado próxima, para eu morar na aldeia, dizia Kurt. Os autocarros andam ao contrário. De manhã, quando tenho de ir trabalhar para a aldeia, há um autocarro que vai da aldeia para a cidade. À tarde, depois do trabalho, há um autocarro que vai da cidade para a aldeia. Isto tem a sua razão de ser, eles não querem pessoas a trabalhar no matadouro, que possam ir diariamente à cidade. Só querem aldeões que raramente saiam da aldeia. A gente nova torna-se rapidamente cúmplice. Precisam apenas de alguns dias para, como os demais, emudecerem e tragarem sangue.»
«De manhã, quando vou para o matadouro, as crianças da aldeia vão para a escola, dizia Kurt. Não levam nem cadernos nem livros, só pedaços de giz. Enchem as paredes e as cercas de corações desenhados. São corações todos entrelaçados uns nos outros. Corações de bovinos e suínos, que mais havia de ser. Estas crianças já são cúmplices. Quando à noite as beijam, elas reconhecem pelo cheio o que os pais tragam sangue no matadouro e querem para lá ir.» Herta Müller, "A Terra das Ameixas Verdes", Difel, 2009
«Durante a noite, foi o vento norte (o vento norte desce do mar de Murmansk, como um anjo gritando, e a terra morre bruscamente). O frio tornou-se terrível. De repente, com um som vibrante de vidro batido, a água gelou. O mar, os lagos, os rios gelam bruscamente, quebrando-se repentinamente o equilíbrio térmico. Até a água do mar se detém na atmosfera, transformando-se numa vaga de gelo curva e suspensa no vazio. No dia seguinte, quando as primeiras patrulhas de sissit, de cabelos ruços e rosto negro de fumo, avançaram cautelosamente, pela cinza ainda quente, através da madeira calcinada e chegaram à beira do lago, um medonho e maravilhoso espectáculo se lhe ofereceu. O lago era como uma imensa placa de mármore branco, na qual estavam pousadas centenas e centenas de cabeças de cavalos. As cabeças pareciam cortadas rentes, a cutelo. Só elas emergiam da crosta de gelo. Todas as cabeças estavam voltadas para a margem. Nos olhos esbugalhados via-se ainda brilhar o terror, como uma chama branca. Perto da margem, um grupo de cavalos ferozmente curvados emergia da prisão de gelo» Curzio Malaparte, "Kaputt", Livros do Brasil, 1962
«Acontece às vezes, se calhar muitas vezes, o homem ferir-se com os espinhos que elas têm para se defender, fica com as mãos arranhadas por ter insistido em apanhar pela primeira vez o primeiro dos seios delas, e apesar disso insiste e tenta agarrá-los outra vez, e eles voltam a feri-lo. Este primeiro explorador é que desenvolveu esses seios, é que os despertou; mas elas, que os devem indubitavelmente a este homem, que foi o único ferir-se com os espinhos novos e afiados, que puxou por eles com o risco de ser mordido, não costuma ser o que leva no fim e à sociedade esses seios ingratos. São outros que virão depois. Mas que isso não os desperte; a vida há-de vingá-lo, e esses seios, que as suas carícias fizeram crescer, virão a ser desfeitos pelas carícias.» Ramón Gómez de La Serna, "Seios", Edições Antígona, 2000
«A lua foi ao cinema, passava um filme engraçado, a história de uma estrela que não tinha namorado. Não tinha porque era apenas uma estrela bem pequena, dessas que, quando apagam, ninguém vai dizer, que pena! Era uma estrela sozinha, ninguém olhava pra ela, e toda a luz que ela tinha cabia numa janela. A lua ficou tão triste com aquela história de amor que até hoje a lua insiste: — Amanheça, por favor!» Paulo Leminski e outros, "Caminho da Poesia", Global Editora, 2006
«A terceira miséria é esta, a de hoje. A de quem já não ouve nem pergunta. A de quem não recorda. E, ao contrário Do orgulhoso Péricles, se torna Num entre os mais, num entre os que [se entregam, Nos que vão misturar-se como um líquido Num líquido maior, perdida a forma, Desfeita em pó a estátua.» Hélia Correia,”A Terceira Miséria”, Relógio D'Água, 2012
«O mundo moderno A velocidade nada pode O mundo moderno Os lugares afastados ficam demasiado longe E no fim da viagem é terrível um homem com uma mulher... "Diz-me, Blaise, estamos muito longe de Montmartre?" Tenho pena tenho pena vem vou-te contar uma história Vem para a minha casa Vem para o meu peito Vou contar-te uma história... Vem! Vem!» Blaise Cendrars, "Poesia em Viagem", Assírio & Alvim, 2005
«We are everyday robots on our phones, In the process of getting home. Looking like standing stones, Out there on our own. We're everyday robots in control, In the process of being sold. Driving in adjacent cars, 'Til we press 'restart.' (They didn't know where it was going on, but they knew what it was, wasn't it?) Everyday robots just touch thumbs. Swimin' in lingo, they become, Stricken in a state of sleep. One more vacant seat. For everyday robots getting old, When our lips are cold. Looking like standing stones, Out there on our own.» Damon Albarn, "Everyday Robots", Parlophone, 2014
«Amalie está sentada no chão. Os copos de vinho estão alinhados por alturas. Os copos de aguardente brilham. As flores leitosas no bojo das taças de fruta são rígidas. As jarras de flores estão arrumadas ao longo da parede. A um canto está o jarrão. Amalie segura na mão a caixinha com a lágrima. Amalie ouve a voz do alfaiate martelando-lhe as fontes: "Ele nunca fez mal a ninguém." Amalie sente uma brasa queimando-lhe a testa. Amalie sente a boca do polícia no pescoço. O bafo dele cheira a aguardente. Aperta-lhe os joelhos com as mãos. Levanta-lhe o vestido "Ce dulce esti", diz o polícia. O seu boné está junto do sapato. Os botões do casaco reluzem. O polícia desabotoa o casaco. "Despe-te", diz ele. Debaixo do casaco azul, traz uma cruz de prata. O padre despe a sotaina preta. Afasta uma madeixa de cabelo da face de Amalie. "Limpa o baton," diz ele. O polícia beija o ombro de Amalie. A cruz de prata fica-lhe pendurada em frente da boca. O padre acaricia as coxas de Amalie. "Despe a combinação", diz ele. Amalie vê o altar pela porta aberta. Entre as rosas está um telefone preto. A cruz de prata está pendurada entre os seios de Amalie. As mãos do polícia apertam os seios de Amalie. "Tens um belos marmelos", diz o padre. Tem a boca molhada. O cabelo de Amalie cai pela borda da cama. As sandálias brancas estão debaixo da cadeira. O polícia sussurra: "Cheiras bem." As mãos do padre são brancas. O vestido vermelho brilha aos pés da cama de ferro. Entre as rosas toca o telefone preto. "Agora não tenho tempo", diz o polícia contrafeito. As coxas do padre são pesadas. "Cruza as pernas nas minhas costas", sussurra ele. A cruz de prata magoa o ombro de Amalie. O policia tem a testa molhada. "Volta-te", diz ele. A sotaina preta está pendurada no prego comprido atrás da porta. O padre tem o nariz frio. "Meu pequeno anjo", diz ele arquejando. Amalie sente os saltos das sandálias brancas no ventre. A brasa da testa queima-lhe os olhos. A língua de Amalie faz pressão na boca. A cruz de prata brilha na vidraça. Na macieira está suspensa uma sombra. É negra e revolta. A sombra é uma tumba. Windisch está à porta do quarto. "Estás surda», diz ele. Estende a mala grande em direcção a Amalie. Amalie vira o rosto para a porta. Tem as faces molhadas. "Eu sei", diz Windisch, "as despedidas são difíceis." Ele é muito alto no quarto vazio. "Agora é outra vez como na guerra", diz ele. "Vai-se e não se sabe se e como e quando se volta." Amalie volta a encher a lágrima. "Com a água do poço não fica tão molhada", diz ela. A mulher de Windisch guarda os pratos na mala. Pega na lágrima na mão. As maçãs do rosto são macias e os lábios húmidos. "Parece impossível que haja coisas destas", diz ela. Windisch sente a voz dela na cabeça. Atira o casaco para dentro da mala. "Já estou farto dela", grita, "não quero voltar a vê-la." Deixa pender a cabeça. E em voz baixa acrescenta: "Não faz senão entristecer as pessoas." A mulher de Windisch enfia os talheres entre os pratos. "Lá isso é verdade", diz ela. Windisch olha para o dedo que ela tirara dos pêlos cheios de visco. Observa a fotografia no seu passaporte. Abana a cabeça. "É um passo difícil", diz ele. As peças de vidro de Amalie brilham dentro da mala. As manchas brancas nas paredes do quarto crescem. O chão está frio. A lâmpada lança longos raios de luz para dentro da mala. Windisch mete os passaportes no bolso do casaco. "Sabe-se lá o que vai ser de nós", suspira a mulher de Windisch. Windisch olha os raios penetrantes da lâmpada. Amalie e a mulher de Windisch fecham as malas.» Herta Müller, "O Homem é um Grande Faisão Sobre a Terra", Cotovia, 1993 Pode respirar.
«Enquanto assim estiveram davam-se todos à oração o mais do tempo, e a práticas espirituais. Faziam-se promessas de diferentes votos, quais neste conflitos da morte se soem fazer; pediam uns aos outros perdão, amigando-se todos os que estavam em ódio, e diferenças, que ainda em tão triste jornada não se falavam, porque tal é a fraqueza humana, que ainda à vista da morte não perde ponto em matéria de honra.» Bernardo Gomes De Brito, "História Trágico-Marítima", Círculo De Leitores, 1994
«Seguindo esta linha de viver, chegarei ao fim dos meus dias; considero a velhice presente em todas as partes do meu destino, e muitas vezes confundi maturidade e mocidade, ignorando as distinções que não me forem naturais.»