quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Imediatamente embora pouco a pouco #28


«Há uma palavra, uma única, da qual não se sabe ao certo se alguma vez atravessou a barreira que separa o silêncio do som. Já que, por muito longa e irreprimivelmente que se tenha falado, a barreira entre o silêncio e o som não deixou nunca de existir, eriçando-se até levar aquele que fala à beira do paroxismo. A incontinência da fala há-de ter nesse intransponível obstáculo a sua origem. E o transbordamento do falar adquire então um caráter de fenômeno cósmico: catarata, erupção vulcânica. E a palavra em que em si mesma é unidade, conjunção milagrosa da “fysis”, do sentido que abrange e reúne os sentidos, sopro vivificante, fogo impalpável e luz da inteligência, cai desastrosa, mais infeliz que a pedra que acabará de rolar alguma vez, ao encontrar o mínimo albergue para o seu peso.
A palavra escondida, oculta sozinha no silêncio, pode surgir sustendo sem o dar a entender um longo discurso, um poema e mesmo um texto filosófico, anonimamente, orientando o sentido, transformando o encadeamento lógico em cadência; abrindo espaços de silêncios que não podem encher-se, reveladores. Já que o que há de revelador numa fala provém dessa palavra intacta que não se anuncia, nem se enuncia a si mesma, invisível à maneira de um cristal, por tanta nitidez e inexistência. Engendradora de musicalidade e de abismos de silêncio, a palavra que não é conceito porque é ela que faz conceber, a fonte do conceber que está propriamente para lá daquilo a que se chama pensar. Pois ela, esta palavra é pensamento que se sustém a si mesmo, reflexo enfim no simplesmente humano da língua de fogo que abriu àqueles sobre quem se pousou o sentido e conhecimento das línguas todas. Não se dá a ver. Abre os olhos da inteligência para que veja ou vislumbre alguma coisa. E não se apresenta a si mesma porque, se o fizesse, acabaria com a relatividade da linguagem e com o seu tempo. E talvez seja ela a que um dia chegará.»

Maria Zambrano, "Clareiras do Bosque", Relógio D`Água, 1995 

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