terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
a temperatura do corpo #23
«O homem do laço preto jazia morto no asfalto onde passara anos. As pessoas acotovelavam-se à volta dele. O ramo de flores ressequidas fora pisado.
Kurt dissera, os loucos da cidade nunca morrem. Mal caem para o lado, logo brota do asfalto, no mesmo sítio onde estavam, outro igual. O homem do laço preto caíra para o lado. Do asfalto tinham brotado outros dois, um policia e um guarda.
O polícia enxotou dali os curiosos. Os olhos faiscavam-lhe, tinha a boca molhada dos gritos. tinha trazido consigo o guarda que estava habituado a puxar pessoas e a sová-las.
O guarda colocou-se à frente das solas dos sapatos do morto e meteu as mãos nos bolsos do sobretudo. O sobretudo cheirava a novo, a sal e óleo como os tecidos impermeáveis nas lojas. Tinha, como acontecia com os tamanhos únicos para os guardas, mangas demasiado curtas. O sobretudo do guarda estava presente. E o boné novo do guarda também. Só os olhos por baixo do boné é que estavam ausentes.
Talvez o que paralisasse o guarda diante deste morto fosse o rasto de infância. Talvez tivesse uma aldeia na mente. Talvez lhe ocorresse o pai que há muito não via. Ou o avô que já morrera. Talvez uma carta com a doença da mãe. Ou um irmão que, desde que o guarda saíra de casa, tinha de apascentar carneiros com pés vermelhos.
A boca do guarda era demasiado grande para esta estação do ano. Tinha-a escancarada, uma vez que, no Inverno, não havia ameixas verdes para a encher.
Junto ao morto, que em breve voltaria, passados tantos anos, a ver a mulher debaixo da terra, o guarda não conseguia espancar ninguém.»
Herta Müller, "A Terra das Ameixas Verdes", Difel, 2009
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário