domingo, 26 de fevereiro de 2012

o Mal-estar da Civilização #24



«Dancei num matadouro, como se o sangue de todos os animais que à minha volta pendiam degolados fosse o meu. Dancei até que em mim houvesse espaço para um poema de que todas as imagens depois fossem desertando.

A luz que desse sangue irradiava, como se nele o sol tivesse mergulhado e os raios nele se houvessem diluído, atravessava-me os poros e fazia-me cantar o coração. Tratava-se de uma luz que nada tinha a ver com a piedade ou a esperança, mas cuja música, sem me passar pelos ouvidos, ia direita ao coração, que no dos animais acabados de abater por momentos encontrava um espelho ainda quente, tão diverso da algidez que habitualmente neles impera.

Só num espelho assim saído há pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem, ao invés da frigorífica mentira onde é comum a vermos esboçar-se. Só esse espelho capta a espessa luz em que parecem ter-se consumido os próprios astros, essa luz que com os objetos que ilumina se confunde numa única substância capaz de arrancar-nos à treva e de dar cor à santidade.

A luz do néon, ante aquela de que se esvazia o coração dum porco, é uma metáfora de impacto reduzido. A luz que das vísceras emana é a de deus, aquela que, por uma excessiva dose de trevas misturada, mais que qualquer outra se aproxima da de deus, que resplandece nas carcaças em costelas onde é fácil pressentir as incipientes asas de algum anjo.

O berro do animal que qualquer faca anónima remete à condição daqueles cujo sangue se escoe ao nosso lado é o único som a que dançar merece a pena. O dia declinou-lhe nas entranhas, quantas manhãs as percorreram absorvidas pelas aberturas dos seus olhos mais não são agora do que um rastro de lume sobre a lâmina e nos baldes onde pinga, reduzidas a um furtivo clarão de dignidade de que todos de repente nos sentimos órfãos.»



Luís Miguel Nava, "Poesia completa, 1979-1994", Publicações Dom Quixote, 2002

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