diário dos mesmos pesares #12
«Se pudermos considerar a linguagem uma velha cidade com um emaranhado de ruas e de praças, com bairros que remontam longe no tempo, com quarteirões demolidos, limpos e construídos de novo e subúrbios que se vão alargando ao campo circundante, eu serei uma pessoa que, após uma longa ausência, já não consegue encontrar o caminho neste aglomerado, já não sabe para que serve uma paragem de autocarro, o que é um saguão, um cruzamento, uma avenida ou uma ponte. Todo o articulado da língua, o ordenamento sintáctico de cada elemento, pontuação, conjunções e por fim até mesmo os nomes das coisas vulgares, tudo ficou mergulhado numa neblina impenetrável. Também o que eu próprio tinha escrito no passado, isso particularmente, deixei eu de entender. Estava sempre a pensar: portanto, uma frase, uma coisa pretensamente cheia de sentido, é na verdade quando muito um expediente medíocre, uma espécie de excrescência da nossa ignorância com a qual tacteamos às cegas a escuridão que nos rodeia, do mesmo modo que muitas plantas e animais marinhos usam os seus tentáculos. Precisamente o que de costume contém a expressão de uma inteligência bem orientada, a exposição de uma ideia mediante certa competência estilística, não passava, parecia-me então, de empresa de todo arbitrária ou ilusória. Já não via coerência alguma, as frases diluíam-se em muitas palavras isoladas, as palavras numa série de conjuntos de letras aleatórios, as letras em sinais desmantelados e estes num rasto cor de chumbo com reflexos prateados aqui e além que alguma criatura rastejante tivesse segregado e deixado como rasto e cuja visão me enchia cada vez mais de sentimentos de horror e vergonha.»
W. G. Sebald, "Austerlitz", Editorial Teorema, 2004
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