sábado, 23 de janeiro de 2010

Momento Pergaminho #3



«Estás no valo a trabalhar. O crepúsculo que te envolve é cor de cinza, o céu acima é cinzento, cinzenta a neve no pálido lusco-fusco, os trapos dos teus companheiros são cinzentos, e também os semblantes deles são cor de cinza. Retomas outra vez o diálogo com o ente querido. Pela milésima vez lanças rumo ao sol teu lamento e tua interrogação. Buscas ardentemente uma resposta, queres saber o sentido do teu sofrimento e de teu sacrifício – o sentido de tua morte lenta. Numa revolta última contra o desespero da morte à tua frente, sentes teu espírito irromper por entre o cinzento que te envolve, e nesta revolta derradeira sentes que teu espírito se alça acima deste mundo desolado e sem sentido, e tuas indagações por um sentido último recebem, por fim, de algum lugar, um vitorioso e regozijante “sim”. Nesse mesmo instante acende-se ao longe uma luz, na janela de uma distante moradia camponesa, postada feito bastidor à frente do horizonte, em meio à cinzenta e desolada madrugada bávara “et lux in tenebris lucet”, e a luz resplandece nas trevas. Agora estiveste horas a fio picando o chão congelado, outra vez passou a sentinela e debochou um pouco de ti, e de novo recomeças o diálogo com teu ente querido. Tens cada vez mais o sentimento de que ela está presente. Sentes que ela está ali. Crê poder tocá-la, parece precisares apenas estender a mão para tomar sua mão. E com grande intensidade te invade o sentimento: Ela, está aqui! Eis que no mesmo instante – o que é aquilo? – sem que tenhas notado, acaba de pousar um passarinho bem à tua frente, sobre o torrão que recém cavaste, para te fitar atento e sereno...»

Viktor Frankl, "Em Busca de Sentido", Editora Vozes, 2006


3 comentários:

Manuel Cardoso disse...

acreditando na dispersão. sempre na dispersão. na dispersão encontra-se o nervo do que importa.

disse...

[...]comentário tantrico?

disse...

sobre "this mortal coil"?