quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Imediatamente embora pouco a pouco #36



«Poderá alguém não saber nenhum segredo da vida, e viver?
- Tu podes morrer a qualquer momento - diria eu ao homem que olha sempre para o nariz ao encarar os outros, ou a esse que enfia os olhos nas unhas quando se sente só.
Quem não saiba nenhum segredo da vida, não tem amparo. Cai, mal o empurre um vento um pouco forte, varrendo-o o mar pelo convés.
Quando encontro quem nem sequer conhece um segredinho da vida, desespero-o, e depois fico a saber que a febre o foi comendo como um leão. Foi todo ele, seguramente, pastos de chamas.
Não saber, por exemplo, que devemos ver tudo quanto temos em redor, os talheres e os pratos, ao comermos; não saber o que cada qual deve colher dentre o que colhe, e a isso deve dedicar-se com afã durante o dia; desprezar tudo, pensar apenas na ambição, gastar o tempo olhando os fios de fumo etc. são coisas sumamente perigosas e desleais. Tudo isso e o resto que for da mesma laia tornam o homem perigoso. 
É preciso estarmos no segredo de que há realidade debaixo dos divãs, de que tem personalidade o homem guiando o carro que se some entre os mais carros; de que as roupas estão ao serviço da nossa realidade, e que sem a sua realidade rapidamente nós desapareceríamos. Até ao relógio devemos estar agradecidos. 
Pode andar sossegado todo aquele que possua muitos simples segredos da vida, porque à sua volta muita gente há-de morrer antes de a vez lhe tocar a ele.»

Ramon Gómez de la Serna, "O Médico Inverosímil", Antígona, 1998

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