quinta-feira, 31 de outubro de 2013

maiores que a meia-noite #1


«Despojada do seu morto, aquela rapariga de cabeça baixa parece segurar Deus. Creonte vê‑a surgir inteiramente rubra, como se os seus andrajos cobertos de sangue fossem uma bandeira. A cidade impiedosa ignora os crepúsculos: o dia escurece subitamente, como uma lâmpada fundida que já não dá luz: se o rei levantasse os olhos, os revérberos de Tebas ocultar‑lhe‑iam agora as leis inscritas no céu. Os homens estão sem destino, visto que o céu está sem astros. (...) Ela avança naquela noite fuzilada pelos faróis: os seus cabelos de louca, os seus farrapos de mendiga, as suas unhas de carregadora mostram até onde deve ir a caridade de uma irmã. Em pleno dia, ela era a água pura sobre as mãos sujas, a sombra no vazio do elmo, o lenço na boca dos defuntos.

Em plena noite, ela torna‑se um clarão. A sua devoção pelos olhos vazados de Édipo brilha sobre milhões de cegos: a sua paixão pelo irmão putrefacto reanima fora do tempo miríades de mortos. Não se pode matar a luz; pode‑se apenas sufocá‑la: tapa‑se com a peneira a agonia de Antígona. Creonte lança‑a para o esgoto, para as catacumbas. Ela regressa ao país das origens, dos tesouros, dos germes. Rejeita Ismena que não passa de uma irmã carnal; afasta em Hémon a cruel possibilidade de conceber vencedores. Parte em busca da sua estrela situada nos antípodas da razão humana, e à qual apenas pode chegar depois de passar pelo túmulo. 

(...) O profundo meio‑dia falava de fúria: a profunda meia‑noite fala de desespero. O tempo deixou de existir nesta Tebas privada de astros; os que dormem estendidos na escuridão absoluta já não vêem a sua consciência. Creonte, deitado na cama de Édipo, repousa sobre a dura almofada da Razão de Estado. (...) Bruscamente, no silêncio embrutecido da cidade que fermenta o seu crime, um rumor vindo do interior da terra anuncia‑se, aumenta, impõe‑se à insónia de Creonte, torna‑se o seu pesadelo.

Creonte levanta‑se, tacteia, encontra a porta dos subterrâneos de que apenas ele conhece a existência, distingue na argila do subsolo os passos do seu filho mais velho. Uma vaga fosforescência que emana de Antígona permite‑lhe reconhecer Hémon pendurado no pescoço daquela que grandiosamente se suicidou, arrastado pela oscilação daquele pêndulo que parece medir a amplitude da morte. Atados um ao outro como que para terem um peso maior, o seu lento vai‑e-vem enterra‑os cada vez mais em direcção à sepultura, e esse peso palpitante volta a pôr em movimento a maquinaria dos astros. O barulho revelador atravessa as calçadas, os ladrilhos de mármore, as paredes de argila endurecida, enche o ar ressequido com uma pulsação de artérias. Os adivinhos encostam ao chão a orelha, auscultam como médicos o peito da terra que caíra em letargia. O tempo retoma o seu curso sob o ruído do relógio de Deus. 

O pêndulo do mundo é o coração de Antígona.»

Marguerite Yourcenar,  “Antigone ou le Choix”. In Feux. [Paris]: Gallimard, D.L. 2007. p. 55‑61.
Trad. Manuel de Freitas

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