domingo, 14 de abril de 2013

a temperatura do corpo #25


«Por vezes o Sr. Cogito recorda, não sem comoção, a sua marcha adolescente rumo à perfeição, esse juvenil per aspera ad astram. Ora sucedeu-lhe um dia, ao correr para as aulas, uma pedrinha entrar-lhe para o sapato. Meteu-se maliciosamente entre a pele e a peúga. O bom-senso ordenava-lhe que se livrasse do intruso, mas o princípio de amor fati – pelo contrário – a suportá-lo. Optou pela segunda, resolução heróica. A princípio não parecia grave, apenas um incómodo e nada mais, no entanto, depois de algum tempo, no campo de consciência apareceu o calcanhar, e isto no momento em que o jovem Cogito tentava laboriosamente alcançar o pensamento do professor que desenvolvia o tema da ideia em Platão. O calcanhar crescia, inchava, pulsava, de rosa pálido tornava-se púrpura como o sol poente e afastava da sua mente não só a ideia de Platão mas qualquer outra ideia. À noite, antes de se entregar ao sono, sacudiu da peúga o corpo estranho. Era um pequeno grão de areia, frio e amarelo. O calcanhar, por sua vez, estava inchado, quente e negro de dor.»

Zbigniew Herbert, "ÍTACA, Cadernos de ideias textos & imagens", Coisas de Ler, nº3 de 2011

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