E
Exercitação
«Difícil é que o raciocínio e o ensino, ainda que de bom grado lhes demos fé, sejam assim assaz poderosos para nos encaminharem à acção, se, ademais, não exercitarmos e formarmos pela experiência a alma ao andamento a que a pretendemos acomodar: de outro modo, quando ela estiver na iminência de agir, sem dúvida que se sentirá embaraçada. Eis porque, entre os filósofos, os que quiseram atingir uma maior excelência, receando que ela os surpreendesse inexperientes e novatos no combate, não se contentaram em esperar no remanso do abrigo pelos rigores da Fortuna, antes, foram ao seu encontro e deliberadamente se expuseram à prova das dificuldades: uns abandonaram os bens materiais para se exercitarem na pobreza voluntária; outros andaram à cata de fadigas e buscaram uma penosa austeridade de vida para se endurecerem contra a dor e o sofrimento; outros ainda, privaram-se das mais preciosas partes do corpo, tais como os olhos e os membros genitais, não fosse a sua utilização, demasiado prazenteira e amena, relaxar e amolecer a firmeza da sua alma. Porém, a morrer, a maior tarefa que temos de fazer, a exercitação não nos pode ajudar. Podemos, pela usança e pela experiência, fortalecermo-nos contra as dores, a vergonha, a indigência e outros acidentes que tais, mas, quanto à morte, só a podemos ensaiar uma vez - quando a ela chegarmos, todos somos aprendizes.
Houve na Antiguidade homens tão exímios a gerir o seu tempo que, na própria morte, tentaram degustá-la e saboreá-la, e que entesaram o espírito para ver o que é que, afinal, era o passamento, mas não voltaram cá para nos dar novas»
Montaigne, "Ensaios", Relógio d'Água, 1998
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