segunda-feira, 5 de outubro de 2009

o Mal-estar da Civilização #6



“O oficial faz um gesto e o sargento agarrou o miúdo por um braço, tirando a pistola do coldre. «Não, aqui não. Mais longe» disse o oficial, voltando as costas. A criança começou a andar ao lado do sargento, correndo para poder acompanhá-lo. De repente, o oficial voltou-se, levantou a chibata e gritou:
«Um momento!». O sargento voltou-se, olhou para o oficial com ar perplexo, depois voltou atrás, empurrando na sua frente a criança, com a extremidade da mão estendida.
«Que horas são?» perguntou o oficial. Depois, sem esperar pela resposta, começou a andar de um lado para o outro, na frente da criança, batendo nas botas com a chibata. O cavalo puxou pelas rédeas e seguiu-o baixando a cabeça e resfolegando. A certa altura, o oficial parou diante da criança. Fixou-a muito tempo em silêncio e disse-lhe com voz lenta, baixa, contrariada:
«Ouve, não quero fazer-te mal. Não passas de um miúdo. Não faço guerra aos miúdos. Disparaste sobre os meus soldados. Mas eu não faço guerra às crianças. Meu Deus! Não fui eu quem inventou a guerra!». O oficial parou e disse ao rapaz com estranha suavidade:
«Ouve, eu tenho um olho de vidro. É difícil distingui-lo do bom. Se fores capaz de me dizer imediatamente, sem pensar, qual dos dois é o olho de vidro, deixo-te partir em liberdade».
«O olho esquerdo» respondeu imediatamente o rapaz.
«Como o descobriste?»
«Porque é o único que tem expressão humana».”

Curzio Malaparte, "Kaputt", Livros do Brasil, 1962

Sem comentários: