sexta-feira, 7 de março de 2014

Não respire... (ou leituras em apneia) #11



«Amalie está sentada no chão. Os copos de vinho estão alinhados por alturas. Os copos de aguardente brilham. As flores leitosas no bojo das taças de fruta são rígidas. As jarras de flores estão arrumadas ao longo da parede. A um canto está o jarrão.
Amalie segura na mão a caixinha com a lágrima.
Amalie ouve a voz do alfaiate martelando-lhe as fontes: "Ele nunca fez mal a ninguém." Amalie sente uma brasa queimando-lhe a testa.
Amalie sente a boca do polícia no pescoço. O bafo dele cheira a aguardente. Aperta-lhe os joelhos com as mãos. Levanta-lhe o vestido "Ce dulce esti", diz o polícia. O seu boné está junto do sapato. Os botões do casaco reluzem.
O polícia desabotoa o casaco. "Despe-te", diz ele. Debaixo do casaco azul, traz uma cruz de prata. O padre despe a sotaina preta. Afasta uma madeixa de cabelo da face de Amalie. "Limpa o baton," diz ele. O polícia beija o ombro de Amalie. A cruz de prata fica-lhe pendurada em frente da boca. O padre acaricia as coxas de Amalie. "Despe a combinação", diz ele.
Amalie vê o altar pela porta aberta. Entre as rosas está um telefone preto. A cruz de prata está pendurada entre os seios de Amalie. As mãos do polícia apertam os seios de Amalie. "Tens um belos marmelos", diz o padre. Tem a boca molhada. O cabelo de Amalie cai pela borda da cama. As sandálias brancas estão debaixo da cadeira. O polícia sussurra: "Cheiras bem." As mãos do padre são brancas. O vestido vermelho brilha aos pés da cama de ferro. Entre as rosas toca o telefone preto. "Agora não tenho tempo", diz o polícia contrafeito. As coxas do padre são pesadas. "Cruza as pernas nas minhas costas", sussurra ele. A cruz de prata magoa o ombro de Amalie. O policia tem a testa molhada. "Volta-te", diz ele. A sotaina preta está pendurada no prego comprido atrás da porta. O padre tem o nariz frio. "Meu pequeno anjo", diz ele arquejando.
Amalie sente os saltos das sandálias brancas no ventre. A brasa da testa queima-lhe os olhos. A língua de Amalie faz pressão na boca. A cruz de prata brilha na vidraça. Na macieira está suspensa uma sombra. É negra e revolta. A sombra é uma tumba.
Windisch está à porta do quarto. "Estás surda», diz ele. Estende a mala grande em direcção a Amalie. Amalie vira o rosto para a porta. Tem as faces molhadas. "Eu sei", diz Windisch, "as despedidas são difíceis." Ele é muito alto no quarto vazio. "Agora é outra vez como na guerra", diz ele. "Vai-se e não se sabe se e como e quando se volta."
Amalie volta a encher a lágrima. "Com a água do poço não fica tão molhada", diz ela. A mulher de Windisch guarda os pratos na mala. Pega na lágrima na mão. As maçãs do rosto são macias e os lábios húmidos. "Parece impossível que haja coisas destas", diz ela.
Windisch sente a voz dela na cabeça. Atira o casaco para dentro da mala. "Já estou farto dela", grita, "não quero voltar a vê-la." Deixa pender a cabeça. E em voz baixa acrescenta: "Não faz senão entristecer as pessoas."
A mulher de Windisch enfia os talheres entre os pratos. "Lá isso é verdade", diz ela. Windisch olha para o dedo que ela tirara dos pêlos cheios de visco. Observa a fotografia no seu passaporte. Abana a cabeça. "É um passo difícil", diz ele.
As peças de vidro de Amalie brilham dentro da mala. As manchas brancas nas paredes do quarto crescem. O chão está frio. A lâmpada lança longos raios de luz para dentro da mala.
Windisch mete os passaportes no bolso do casaco. "Sabe-se lá o que vai ser de nós", suspira a mulher de Windisch. Windisch olha os raios penetrantes da lâmpada. Amalie e a mulher de Windisch fecham as malas.»

Herta Müller, "O Homem é um Grande Faisão Sobre a Terra", Cotovia, 1993

Pode respirar.

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