segunda-feira, 30 de abril de 2012

Teoria da Conspiração #32 (ou o Acabar a Corrida a Passo)


«Ainda não era o verdadeiro Homem, com dizia Klober, o Homem que quando se aproxima se aproxima para matar, mas havia já nele algo de muito significativo: qualquer aproximação a outra existência, não sendo ainda para a eliminar, era já, e desde há muito, para não amar. Posso aproximar-me com segurança, pensava Walser, naquele momento em que recordava de novo o beijo dado a Clairie, posso aproximar-me sem medo de qualquer pessoa porque sei que não a vou amar. Já estou preparado para não amar ninguém - e esta frase dita assim, para si próprio, era sentida como a sua grande arma em tempo de guerra, a grande defesa em relação à agressividade do século. Não tinha sequer uma pistola, mas eliminara a grande fraqueza da existência, fizera desaparecer a primária fragilidade da espécie: não possuía qualquer inclinação para o amor ou para a amizade! E nesse momento, a caminhar em plena rua, desarmado, observando de cima os seus sapatos castanhos, velhos, sapatos irresponsáveis como troçava Klober, nesse momento Walser sentia-se tão seguro - e, ao mesmo tempo ameaçador - como se avançasse dentro de um tanque pela rua.»


Gonçalo M. Tavares, "A Máquina de Joseph Walser", Caminho, 2004

domingo, 29 de abril de 2012

dedicatória #15*


* dedicada a todos os jesuítas.

sábado, 28 de abril de 2012

Imediatamente embora pouco a pouco #18



«Há trinta e cinco anos que prenso papel velho e livros, há trinta e cinco anos que me sujo de letras, de tal modo que me pareço com as enciclopédias de que durante esse tempo todo devo ter prensado pelo menos três toneladas: sou um cântaro cheio de água viva e água morta, basta inclinar-me um pouquinho e jorram de mim ideias lindas; sou culto independentemente da minha vontade e, assim, nem sei bem quais as ideias que são minhas, e saídas da minha cabeça, e que ideias li. Foi assim que, durante estes trinta e cinco anos, me liguei a mim próprio e ao mundo à minha volta; é que, quando estou a ler, afinal não leio, apenas colho com o bico uma bela frase e chupo-a como um rebuçado, como se bebericasse um cálice de licor durante muito tempo, até que a ideia se espalhe em mim como o álcool; ela dissolve-se em mim tão lentamente que penetra não só no meu cérebro e no coração mas pulsa também nas minhas artérias até às raízes dos capilares.»


Bohumil Hrabal, "Uma solidão demasiado ruidosa", Edições Afrontamento, 1992


sexta-feira, 27 de abril de 2012

A vida não é um sonho #17



«"Durante o caminho - disse Baranowicz - estive sempre a pensar se te deveria dizer. Ao fim e ao cabo, tenho pena que regresses a casa. Se calhar, nunca mais nos vemos e tu nunca mais me escreves."
"Nunca te esquecerei", disse Tunda.
"Não prometas nada!", disse Baranowicz.
Foi assim o adeus.»


Joseph Roth, "Fuga sem fim", Publicações Dom Quixote, 1988

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Orelhas de Elefante #26


«Todos os astros são repetições de uma combinação original, ou tipo. Não é possível a formação de novos tipos. O seu número esgotou-se necessariamente desde a origem das coisas –embora as coisas nunca tenham tido uma origem. Isto significa que um número fixo de combinações originais existe em toda a eternidade, e não é mais susceptível de aumentar ou diminuir do que a matéria. É e permanecerá o mesmo até ao fim das coisas, que, tal como não podem começar, também não acabarão. Eternidade dos tipos actuais no passado como no futuro, e nem um astro que não seja um tipo repetido até ao infinito, no tempo e no espaço – é esta a realidade.»

Louis Auguste Blanqui (1805-1881)


quarta-feira, 25 de abril de 2012

liberdade


©Coppola, Sofia;1999

terça-feira, 24 de abril de 2012

a temperatura do corpo #13


«Meu corpo interior — por fazer parte da minha autoconsciência — oferece um conjunto de sensações orgânicas internas, de necessidades e de desejos reunidos ao redor de um centro interior: o que é exterior é registrado de forma fragmentária, não alcança autonomia e pertence à minha unidade interna por intermédio de um equivalente interno. Não posso reagir de modo imediato ao meu corpo exterior: o tom emotivo-volitivo daquilo que se relaciona com meu corpo está sempre vinculado às possibilidades e aos seus estados internos — dor, prazer, paixão, satisfação, etc. Posso amar meu próprio corpo, sentir por ele algo como ternura, mas isso apenas significa o desejo constante que tenho dos estados e das emoções que se realizam através do meu corpo, e esse amor nada tem em comum com o amor que tenho pela exterioridade individualizada do outro.»


Mikhail Bakhtin, "Estética da Criação Verbal", Martins Fontes, 1997

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dicionário das causalidades #11



L
       
Livro

«Você sempre me disse que esse livro foi me transformando à medida que eu o escrevia. "Depois de terminá-lo, você não era mais o mesmo." Acho que estava enganada. O que me permitiu mudar não foi escrevê-lo; foi ter produzido um texto publicável e vê-lo publicado. Publicar mudou a minha situação. Conferiu-me um lugar no mundo, conferiu realidade ao que eu pensava, uma realidade que excedia minhas intenções; que me obrigava a me redefinir e a me ultrapassar continuamente para não me tornar o prisioneiro nem da imagem que os outros faziam de mim, nem de um produto que se tornara outro em relação a mim, por sua realidade objetiva. A magia da literatura: ela me dava acesso à existência na medida em que eu tinha me descrito, escrito, na minha recusa, era essa recusa, e, por sua publicação, me impedia de perseverar nessa recusa. Era precisamente o que eu tinha esperado, e que só a publicação permitiria que eu obtivesse: ser obrigado a me engajar além do que minha própria vontade me permitia; e me fazer perguntas, perseguir fins que eu não havia definido sozinho.
Assim, o livro não se tornará operante pelo trabalho da sua elaboração. Ele vai se tornar progressivamente operante à medida que me confronte com possibilidades e relações com os outros, inicialmente imprevistas.» 

André Gorz, "Carta a D. - História de um amor", Cosac Naify, 2008

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Chefe, precisamos de mentiras novas #6



«É muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de quem o estima e confiar nos que o enganam. Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com o isco do anzol é menos fácil do que atrair os povos para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante. É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas.»


Etienne de la Boétie, "Discurso sobre a servidão voluntária", Antígona, 1997


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Imediatamente embora pouco a pouco #17



«Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente - tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada.»


Giorgio Agamben, "Ideia da prosa", Cotovia, 2006

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Paz à sua bala #2


Ponta Delgada, 11 de setembro de 1891

terça-feira, 17 de abril de 2012

Toda a humilhação leva à morte #13



«Tenho seis meses por minha conta. Ninguém deve saber de mim durante este período de tempo. Ou bem que terei de criado algo de Verdadeiro, ou então acabarei com tudo. Talvez não com a existência, mas sem dúvida com a Arte. Portanto, sem esta não há verdadeira vida para mim. Daí o perigo.»

Hermann Ungar, "Meninos e Assassinos", & Etc, 1990   

segunda-feira, 16 de abril de 2012

a poesia não me interessa #32




Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
Ninguém animará pela palavra o nosso pó
Ninguém
Louvado sejas, Ninguém
Por amor de ti queremos
florir
Em direção
a ti
Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém
Com
o estilete claro da alma,
o estame ermo do céu,
a corola vermelha
da purpúrea palavra que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho


Paul Celan, "Sete Rosas Mais Tarde", Edições Cotovia, 1996

domingo, 15 de abril de 2012

Teoria da Conspiração #32 (ou a Predilecção dos 0 aos 100)


«- O que queres tu fazer, querida? - perguntou Colin.
- Dar beijos - disse Chloé.
- Muito bem!... - respondeu Colin. - E depois?
- Depois - disse Chloé -, não posso dizer em voz alta.
- Bem - insistiu Colin -, e depois?»

Boris Vian, "A Espuma dos Dias", Relógio d'Água, 2001  

sábado, 14 de abril de 2012

Chamada a pagar no destinatário #11


«I'm an absolute beginner and I'm absolutely sane as long as we're together the rest can go to hell»

sexta-feira, 13 de abril de 2012

ninguém é filho das ervas #2



«Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» 
(Evangelho segundo S. João, 12:24)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Por vocações de Leitura #6 (as princesas)

Raymond Carver

Sam Shepard

Gottfried Benn

Dino Buzzati

Ambrose Bierce

G. Lipovetsky

quarta-feira, 11 de abril de 2012

espécie de oração particular #15


«Zumbe uma mosca, incerta e mínima...

Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que enchem de
ser já dia a minha consciência do nosso quarto... Nosso quarto? Nosso de
que dois, se eu estou sozinho? Não sei. Tudo se funde e só fica,
fugindo, uma realidade-bruma em que a minha incerteza soçobra e o meu
compreender-me, embalado de ópios, adormece...

A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora...

Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos
nossos sonhos...

Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da
vida, porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que
se quer e menos do que se espera.

Desenganemo-nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque se envelhece
de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.

Não choremos, não odiemos, não desejemos...

Cubramos, ó Silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil hirto e
morto de nossa Imperfeição...»

Fernando Pessoa, "Livro do Desassossego", Relógio D'Água, 2008





segunda-feira, 9 de abril de 2012

adormecer na praia

v   
©Hudson, Hugh;1981

domingo, 8 de abril de 2012

sexta-feira, 6 de abril de 2012

o Mal-estar da Civilização #26



«O mal-educado não tirava o chapéu em nenhuma situação. Nem às senhoras quando passavam, nem em reuniões importantes, nem quando entrava na igreja.
Aos poucos a população começou a ganhar repulsa pela indelicadeza desse homem, e com os anos esta agressividade cresceu até chegar ao extremo: o homem foi condenado à guilhotina.

No dia em questão colocou a cabeça no cepo, sempre, e orgulhosamente, com o chapéu.
Todos aguardavam.
A lâmina da guilhotina caiu e a cabeça rolou.
O chapéu, mesmo assim, permaneceu na cabeça.
Aproximaram-se, então, para finalmente arrancarem o chapéu àquele mal-educado. Mas não conseguiram.
Não era um chapéu, era a própria cabeça que tinha um formato estranho.»


Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Brecht", Caminho, 2004

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Paz à sua bala #1


São Miguel de Seide, 1 de Junho de 1890

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Imediatamente embora pouco a pouco #16


«Que a morte venha ter connosco ou que vamos nós ao seu encontro, não tem a mínima importância. Há quem diga: "A coisa mais bela é morrer de morte natural!" Convence-te de que esta frase é um absurdo enunciado de um espírito o mais inepto possível. Ninguém morre senão de morte natural! Em outra coisa ainda deverás meditar: ninguém morre senão no seu próprio dia. Do teu tempo, nunca perderás um segundo, pois todo o tempo que sobra já não te pertence!»

Séneca, "Cartas a Lucílio", Fundação Calouste Gulbenkian, 2004

terça-feira, 3 de abril de 2012

Dicionário das causalidades #10


        
J
        
Julgar-se
       
«Nós temos em toda a vida, especialmente na esfera da comunicação espiritual, o hábito errado de emprestarmos às outras pessoas muito daquilo que nos é próprio, como se tivesse de ser mesmo assim. Mas como elas, além disso, nos mostram também o que têm de si próprias, daí resultam, dado que nós procuramos criar uma unidade com as duas partes, autênticos monstros, semelhantes àqueles que, numa casa com muitos cantos, a luz de uma lanterna produz com uma parte de sombras e uma parte de objectos reais. Não há nenhuma operação mais útil mas, ao mesmo tempo, mais difícil que deduzir da imagem do outro aquilo que inconscientemente lhe foi emprestado. No entanto, só assim fazemos dos outros verdadeiras pessoas - ou, dito de uma forma mais breve: o homem julga compreender os homens quando acrescenta a uma suposta e ilimitada analogia com o seu próprio eu ainda alguma coisa que é contrária a esse eu. É a experiência que leva cada um a poder lidar com pessoas que tem de imaginar, na sua essência, diferentes de si mesmo.»

Hugo Hofmannsthal, "Livro Dos Amigos", Assírio & Alvim, 2002

domingo, 1 de abril de 2012

Momento Pergaminho #9

 


«Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante - na medida em que é possível estabelecer uma comparação aproximada - de um outro ser qualquer. Se um ser não é capaz de sentir sofrimento, ou de experimentar alegria, não há nada a ter em conta. Assim, o limite da senciência (utilizando este termo como uma forma conveniente, se não estritamente correta, de designar a capacidade de sofrer e/ou, experimentar alegria) é a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses dos outros. O estabelecimento deste limite através do recurso a qualquer outra característica, como a inteligência ou a racionalidade, constituiria uma marcação arbitrária. Por que não escolher qualquer outra característica, como a cor da pele?»

Peter Singer, "Libertação Animal", Via Optima, 2008