sábado, 30 de junho de 2012

Orelhas de Elefante #28

Clark, "Iradelphic", Warp Records, 2012

Fennesz, "AUN - The Beginning and the End of All Things" [OST], 2012

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Dicionário das causalidades #13


N
       
Naturezas

«Qualquer perspectiva de despertar ou voltar à vida faz com que todos os tempos e lugares sejam indiferentes para um homem morto. O local em que isso pode ocorrer é sempre o mesmo e indescritivelmente agradável a todos os nossos sentidos. Na maioria das vezes, só permitimos que circunstâncias marginais e transitórias estabeleçam nossas oportunidades. Elas são, de fato, a causa de nossa distracção. Pertíssimo de todas as coisas está aquela força que lhes modela o ser. Junto de nós as maiores leis estão continuamente sendo executadas. Junto de nós não está o operário que contratamos e com quem gostamos tanto de falar, mas o operário cuja obra somos nós.»

Henry David Thoreau, "Walden ou a Vida Nos Bosques", Antígona, 1999

quarta-feira, 27 de junho de 2012

terça-feira, 26 de junho de 2012

Não respire... (ou leituras em apneia) #6


«Sabes que decidi manter-me de cabeça descoberta, embora tal atitude constitua uma falta grave de desobediência e revele que, daqui para o futuro, eu me deva manter numa perspectiva sagrada?»

Maria Gabriela Llansol, "Na Casa de Julho e Agosto", Relógio D'Água, 2003

Pode respirar.  

segunda-feira, 25 de junho de 2012

espécie de oração particular #18


«Aprende
A não esperar por ti pois não te encontrarás 

No instante de dizer sim ao destino
Incerta paraste emudecida 
E os oceanos depois devagar te rodearam


A isso chamaste Orpheu Eurydice - 
Incessante intensa a lira vibrava ao lado 
Do desfilar real dos teus dias 
Nunca se distingue bem o vivido do não vivido
O encontro do fracasso —.
Quem se lembra do fino escorrer da areia 
                                                    [na ampulheta
Quando se ergue o canto
Por isso a memória sequiosa quer vir à tona
Em procura da parte que não deste
No rouco instante da noite mais calada
Ou no secreto jardim à beira rio
Em Junho»


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Musa", Editorial Caminho, 1994

sábado, 23 de junho de 2012

diário dos mesmos pesares #17


«A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos tempos, mais as actividades da convivência e as trocas genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é geral, a circunstância particular de que, em espíritos simples, o remorso causado por um mal feito se confunde frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser, sem pau nem pedra, duas vezes o merecido.»


José Saramago, "Ensaio sobre a Cegueira", Editorial Caminho, 1995

sexta-feira, 22 de junho de 2012

ninguém é filho das ervas #5



«Perder-se numa cidade como se perde numa floresta exige toda uma educação»
Walter Benjamin

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Teoria da Conspiração #35 (ou a ladeira do nosso contentamento)



«No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante subtil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa sequência de acções sem elo em que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.»


Albert Camus, "O Mito de Sísifo", Livros do Brasil, 2005 

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Imediatamente embora pouco a pouco #21



«"Então o que é que eu devo fazer?" perguntei ponderadamente.
"Deves aprender a esperar correctamente."
"E como é que isso se aprende?"
"Desprendendo-te a ti próprio, deixando para trás a ti e a tudo o que é teu, tão decididamente que nada mais reste de ti a não ser uma tensão sem nenhuma intenção."
"Então devo perder intenção - intencionalmente?" ouvi-me dizer.
"Até hoje nenhum aluno me fez essa pergunta, de modo que não sei a resposta correcta."
"E quando começamos com estes novos exercícios?"
"Espera até chegar o momento."»


Eugen Herrigel, "Zen e a arte do tiro com arco", Via Optima, 1987
  

terça-feira, 19 de junho de 2012

o Mal-estar da Civilização #28



«Os moralistas teóricos chamam “boas” apenas às acções que são expressão de moções pulsionais boas, e negam o seu reconhecimento às demais. Mas a sociedade, guiada por propósitos práticos, não se preocupa com tal distinção; contenta-se com que um homem oriente o seu comportamento e as suas acções segundo as prescrições culturais, e não se interroga sobre os seus motivos.
Vimos que a coerção externa, exercida sobre o homem pela educação e pelo meio ambiente, suscita uma ulterior transformação da sua vida pulsional no sentido do bem, uma viragem do egoísmo para o altruísmo. Mas este não é o efeito necessário ou regular da coacção exterior. A educação e o ambiente não se limitam a oferecer prémios de amor, mas lidam também com prémios de outra natureza, com a recompensa e o castigo. Podem, pois, fazer que o indivíduo submetido à sua influência se resolva a agir bem, no sentido cultural, sem que nele tenha realizado um enobrecimento das pulsões, uma mutação das tendências egoístas em tendências sociais. O resultado será, no conjunto, o mesmo; só em circunstâncias especiais se tornará patente que um age sempre bem, porque a tal o forçam as suas inclinações pulsionais, mas o outro só é bom porque tal conduta cultural traz vantagens aos seus intentos egoístas, e só enquanto e na medida em que as procura. Nós, porém, com o nosso conhecimento superficial do indivíduo, não temos meio algum de distinguir os dois casos, e o nosso optimismo induzir-nos-á decerto a exagerar desmesuradamente o número dos homens transformados pela cultura.»


Albert Einstein, Sigmund Freud, "Porquê a Guerra? Reflexões sobre o destino do mundo", Edições 70, 1997

segunda-feira, 18 de junho de 2012

a temperatura do corpo #17


«Mostrar o potencial de felicidade presente na mais insignificante situação quotidiana e em qualquer forma de socialidade humana: essa é a eterna razão política da pornografia. Mas o seu conteúdo de verdade, que a coloca nos antípodas dos corpos nus que enchem a arte monumental do Fim-de-século, é que ela não eleva o quotidiano ao nível do céu eterno do prazer, mas exibe antes o irremediável carácter episódico de todo o prazer, a íntima digressão de todo o universal. Por isso, só na representação do prazer feminino, cuja expressão é visível apenas no rosto, ela esgota a sua intenção.»

Giorgio Agamben, "Ideia da prosa", Cotovia, 1999

sábado, 16 de junho de 2012

Perguntas Abandonadas #20


«pergunta
o menino à professora de trabalhos manuais: senhora, este é o azul do céu? este papel de lustro?»

Rui Nunes

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Momento Pergaminho #10











«O mundo há muito que está de posse do sonho de uma coisa da qual apenas precisa de ter consciência para a possuir realmente»

carta de Karl Marx a Arnold Ruge, Kreuznach, Setembro 1843

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Chamada a pagar no destinatário #12


«the number you are trying to call is not reachable»

terça-feira, 12 de junho de 2012

quero outra noite no fim do dia #9


«O caminho estava livre. Embrenhámos-nos na vereda mas não devíamos ir longe. Uma centenas de passos mais à frente abria-se uma caverna donde saía um sufocante cheiro a enxofre e nuvens de colibris. Logo que atingimos a entrada da caverna o cheiro a enxofre dissipou-se e os colibris que voavam por ali sumiram-se no rochedo. Ao mesmo tempo uma voz gritou:
 - Atenção à mina! Atenção à mina!
O aviso não era despropositado pois alguns segundos depois uma explosão formidável dava-nos cabo dos ouvidos e um enorme molho de palha, jorrando da caverna, passava-nos por cima da cabeça para se esmagar no solo com um estrondo terrível.»


Benjamin Péret, "Morte aos Chuis e ao Campo da Honra", & Etc, 1977 

segunda-feira, 11 de junho de 2012

espécie de oração particular #17


«— Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição. 
E tu dirás está bem.»


Vergílio Ferreira, "Em Nome da Terra", Bertrand Editora, 1990

sábado, 9 de junho de 2012

ninguém é filho das ervas #4



«Estar à espera de se tornar planta, lembrar-se de ter sido animal, ter vindo de muito longe para esperar: tornar-se, isto é: adquirir o seu repouso.»
Maria Filomena Molder

sexta-feira, 8 de junho de 2012

diário dos mesmos pesares #16


«Cada homem é a medida do Universo.»


Teixeira de Pascoaes, "Aforismos", Assírio & Alvim, 1998


«Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.»


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Obra Poética I", Editorial Caminho, 1992

quinta-feira, 7 de junho de 2012

a temperatura do corpo #16


Na mesa ao lado,
um jardim de senhoras ao domingo,
associadas na ordem da má-língua
e do chá com limão,
num café de inverno, pela tarde.
Queixam-se deste tempo, bebem, fumam,
discutem seus segredos, concordam com sorrisos…
e de súbito param a olhar-te.
Despreocupada contas
― e no local a tua voz é como um sabre
que fere o inimigo ―
uma história de cama com detalhes hábeis,
uma maneira de sentir a vida
que penetra e dissolve
a luz de igreja,
a humilhação do frio nos joelhos,
os caixões fechados e as fotos do casamento.
Certo tipo de gente
sofre de invernia nos olhos,
conhece as geadas
que passam por baixo da porta,
uma porta de quarto,
ali onde a noite tem sempre
um cheiro a espera inútil,
e depois da espera aceitam-se as mentiras,
e a seguir o silêncio.
Nada deixam os anos na mesa do lado,
senão um murmúrio que envelhece e uma sombra
que cruza os lábios como uma cicatriz,
um rancor na epiderme da consciência.
A tua voz é alta e jovem
e vestida de festa, e quando se desnuda
faz com que o sol de inverno, comovido,
se detenha um instante para apoiar a fronte
nas vidraças do café.

Luis García Montero, Espanha (n. 1958), traduzido por Nuno Dempster

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Teoria da Conspiração #34 (ou o desdobrado é antes do mais um dividido)


«Pouco ou muito, de tempos a tempos toda a pessoa sente um desejo de abandonar o seu “eu” (esse conjunto aproximativo), tentada por um outro “eu”. Máscaras, cerimónias e festas e jogos respondem a essa tentação sem a realizarem, detendo-se antes, realizando apenas uma macacada.
Sendo o problema primordial na vida o tomar a cargo o próprio ser, a personalidade de um indivíduo é constituída, não sem andar às apalpadelas, na primeira idade porque a mais cómoda no seu meio original, e é mantida, mais ou menos igual no decurso dos anos, por facilidade, como sendo a mais conveniente.
Esta formação a longo prazo tendo ganho em profundidade já não pode ser dividida apesar dos remorsos e da inapropriação, a menos que uma necessidade seja fortemente sentida, e em casos muito raros.»


Henri Michaux, "Uma via para a insubordinação", & Etc, 2008

terça-feira, 5 de junho de 2012

a poesia não me interessa #33


Música do fogo, tu não soubeste tocar.
Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.



Henri Michaux, "Nós dois ainda", Bonecos Rebeldes, 2009

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Chefe, precisamos de mentiras novas #7



«É bem evidente a vida mesquinha e vil que muitos levam, digo-o porque a experiência me tem aguçado a visão para os que vivem na corda bamba, tentando negócios para escaparem às dívidas - esse antiquíssimo atoleiro a que os latinos chamavam de aes alienum, o cobre alheio, pois algumas das suas moedas eram cunhadas nesse metal -, ainda assim vivendo e morrendo, enterrados pelo dinheiro alheio, sempre prometendo pagar, jurando pagar amanhã e morrendo hoje insolventes; bajulando por favores, angariando fregueses de mil e um modos desde que não redundem em prisão, mentindo, adulando, votando, enredando-se em meia dúzia de palavras corteses ou expandindo-se numa atmosfera de melíflua e vaporosa generosidade a fim de persuadirem o vizinho a deixá-los engraxar-lhe os sapatos, escovarem-lhe o chapéu e casaco, limparem-lhe a carruagem ou levarem-lhe as compras da mercearia; fazendo-se de doentes com vista a economizarem algo para o dia em que estejam de facto doentes, algo a ser guardado numa velha cómoda, armazenado atrás do reboco ou, melhor ainda, na bancada de tijolos, seja onde for, seja muito ou pouco.» 


Henry David Thoreau, "Walden ou a Vida Nos Bosques", Antígona, 1999

domingo, 3 de junho de 2012

o Mal-estar da Civilização #27



«Há muitos anos que os meus pensamentos não visam outro alvo que senão eu mesmo, que só me examino e estudo a mim próprio, e se outra coisa venho a estudar, é para logo a aplicar a mim, ou, mais bem dito, em mim. E não me parece laborar em erro se, tal como se faz com outras ciências, incomparavelmente menos úteis, eu partilhar o que aprendi com esta, conquanto não esteja muito satisfeito com os progressos que nela fiz. Não há descrição tão difícil como a de si mesmo, nem, decerto, tão útil. Ademais, é preciso pentear-se, preparar-se e arranjar-se para se apresentar em público. Ora eu estou incessantemente a enfeitar-me porque incessantemente estou a descrever-me.»         


Montaigne, "Ensaios", Relógio d'Água, 1998

sábado, 2 de junho de 2012

K, o elemento estranho da tabela literária #2



«Porque somos todos como troncos de árvore na neve. Estes, em aparência, estão apenas pousados, de tal forma que um pequeno empurrão seria suficiente para os fazer rolar. Mas não, é impossível, estão bem seguros ao solo. E até isso não passa de uma aparência.»  


Franz Kafka, "Contos", Cavalo de Ferro, 2004

sexta-feira, 1 de junho de 2012

dedicatória #16*

* dedicada a todas.