segunda-feira, 17 de março de 2014

Teoria da Conspiração #49 (ou o Coração é uma Máquina Cúmplice)


«Kurt vinha todas as semanas à cidade. Era engenheiro num matadouro. Este ficava na orla de uma aldeia, não muito longe da cidade. A cidade fica demasiado próxima, para eu morar na aldeia, dizia Kurt. Os autocarros andam ao contrário. De manhã, quando tenho de ir trabalhar para a aldeia, há um autocarro que vai da aldeia para a cidade. À tarde, depois do trabalho, há um autocarro que vai da cidade para a aldeia. Isto tem a sua razão de ser, eles não querem pessoas a trabalhar no matadouro, que possam ir diariamente à cidade. Só querem aldeões que raramente saiam da aldeia. A gente nova torna-se rapidamente cúmplice. Precisam apenas de alguns dias para, como os demais, emudecerem e tragarem sangue.»


«De manhã, quando vou para o matadouro, as crianças da aldeia vão para a escola, dizia Kurt. Não levam nem cadernos nem livros, só pedaços de giz. Enchem as paredes e as cercas de corações desenhados. São corações todos entrelaçados uns nos outros. Corações de bovinos e suínos, que mais havia de ser. Estas crianças já são cúmplices. Quando à noite as beijam, elas reconhecem pelo cheio o que os pais tragam sangue no matadouro e querem para lá ir.»  

Herta Müller, "A Terra das Ameixas Verdes", Difel, 2009

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