sexta-feira, 30 de abril de 2010

a vida não é um sonho #5



«Dirigida pela lógica da teatralidade, a moda é um sistema inseparável do excesso, da desmedida, do exagero. O destino da moda é ser inexoravelmente arrastada numa escalada de sobrecargas, exageros de volume e amplificações da forma que desdenham do ridículo.»

Gilles Lipovetsky, "O Império do Efémero", Dom Quixote, 1992

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Momento Pergaminho #5



«Certos espíritos habitam os corpos humanos, outros o corpo de outros animais, plantas, pedras, minerais: em suma, nada existe que esteja privado de espírito, de inteligência - nem o espírito destinou para si morada eterna em lugar algum. A matéria flutua de espírito em espírito, de natureza em natureza ou composição, e o espírito flutua de matéria em matéria. Sucedem-se a alteração, a mutação, a paixão e, por fim, a corrupção, quer dizer, a separação de determinadas partículas e sua composição com outras. A morte mais não é que dissolução. Nenhum espírito ou corpo desaparece: há somente uma contínua mutação de combinações e actualizações.»

Giordano Bruno, "Tratado da Magia", Tinta da China, 2007

quarta-feira, 28 de abril de 2010

o homem de quarta-feira #32



«Quem se habituou a copiar palavras alheias não ignora que a escolha nasce de uma decisão súbita, de imediato - e tantas vezes durante quanto? - injustificável. É como uma chave que um dia há-de abrir alguma porta.»

Maria Filomena Molder, "A Imperfeição da Filosofia", Relógio D'Água, 2003

terça-feira, 27 de abril de 2010

a poesia não me interessa #19



«A noite é dupla: uma astenia indirecta e directa. A primeira resulta por encadeamento, por excesso de luz; a segunda por falta ou insuficiência de luz. Do mesmo modo, existe também uma inconsciência por falta de excitação interior e uma inconsciência por excesso de excitação interior - naquela um orgão demasiado rude, nesta um orgão demasiado delicado. Compensaremos uma, diminuindo a luz ou excitação interior; compensaremos a outra, aumentando-a através da multiplicação da mesma, ou através do enfraquecimento e fortalecimento do orgão. A noite e inconsciência por carência é o caso mais comum. A inconsciência por excesso é o que chamamos loucura. Uma direcção diferente da excessiva excitação interior modifica a loucura.»

Novalis, "Fragmentos de Novalis", Assírio & Alvim, 2000

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Toda a humilhação leva à morte #10



«És um ocioso, um sonâmbulo, um indolente. As definições variam conforme as horas, os dias, mas o sentido permanece mais o menos claro: sentes-te pouco disposto a viver, a agir, a modificar; queres apenas esperar e esquecer.»

Georges Perec, "Um Homem que Dorme", Editorial Presença, 1991

sábado, 24 de abril de 2010

Imediatamente embora pouco a pouco #7



«De uma maneira geral, as pessoas acreditam que o interesse e a novidade do conteúdo levam a que o tempo "passe", isto é, abreviam a passagem do tempo, ao passo que a monotonia e o vazio contribuiriam para obstruir ou refrear essa mesma passagem. Tal convicção não é necessariamente correcta. O vazio e a monotonia podem porventura alongar o momento e a hora, tornando-os mais fastidiosos, mas abreviam, por outro lado, os enormes e incomensuráveis períodos de tempo, dissipando-os até ao nada. Um conteúdo rico e interessante pode, em contrapartida, abreviar e acelerar a hora e até mesmo o dia, conferindo, no entanto, e em termos absolutos, amplitude, peso e solidez à marcha do tempo.»

Thomas Mann, "A Montanha Mágica", Publicações Dom Quixote, 2009

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Teoria da Conspiração #16 (ou o Teste de ginástica ocular)



«Se me perguntas o que eu vi, talvez seja capaz de fazer um esboço, que o represente; mas se me perguntas que percurso fez o meu olhar, na maioria dos casos, serei de todo incapaz de me recordar.»

Ludwig Wittgenstein, "Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas", Fundação Calouste Gulbenkian, 1995

quinta-feira, 22 de abril de 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

o homem de quarta-feira #31



«Assim que apanhei o Tom a sós, perguntei-lhe qual era a ideia, na altura da evasão - o que é que contava fazer se a evasão tivesse ocorrido como deve ser e se tivéssemos conseguido libertar um preto que já era livre? Ele disse aquilo que tinha planeado desde o princípio era que se conseguíssemos tirar o Jim dali ileso, íamos descer o rio com ele, sempre a ter aventuras até chegarmos à foz; depois contávamos-lhe que ele era livre e trazíamo-lo de volta para cima num vapor, em grande estilo, pagávamos-lhe pelo tempo que tinha perdido; escrevíamos uma carta antes de chegar, para reunir os pretos todos e entrávamos com ele na cidade a dançar com uma procissão de candeias e uma banda e então ele seria um herói, e nós também.»

Mark Twain, "As Aventuras de Huckleberry Finn", Relógio D'Água, 2009

terça-feira, 20 de abril de 2010

Orelhas de Elefante #14



Scout Niblett, "The Calcination of Scout Niblett", Drag City, 2010

Porque há musicas de outras dimensões.

«As palavras esperam o sono
e a música do sangue sobre as pedras corre
a primeira treva surge
o primeiro não a primeira quebra»

António Ramos Rosa

segunda-feira, 19 de abril de 2010

alegações finais #3



«- Todos os sucessos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; porque enfim, se vós não tivésseis sido expulso de um belo castelo com grandes pontapés no traseiro por amor da menina Cunegundes, se vós não tivésseis passado pela Inquisição, se vós não percorrêsseis a América a pé, se vós não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se vós não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do maravilhoso Eldorado, vós não estaríeis aqui a comer os limões, doces e pistácios.
- Tudo isso é muito bonito - respondeu Cândido - mas é preciso cultivar a nossa horta.»

Voltaire, "Cândido", Guimarães Editores, 1999

domingo, 18 de abril de 2010

diário dos mesmos pesares #4



«Entra pela janela aberta o rumor da avenida. E do parque entre os prédios, um músico ambulante toca o seu saxofone. É um som volumoso, oco, tem nos finais vibrações melodiosas. É uma música nostálgica, de uma lentidão genesíaca. E a toada sobe por entre o rumor do tráfego. E paira ao alto como uma estrela.»

Vergílio Ferreira, "Pensar"‎, Bertrand Editora, 1992

sábado, 17 de abril de 2010

ondas de paixão



©Gondry,Michel;2004

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Perguntas Abandonadas #7


«Se admito a malícia, por que hei-de afastar a distracção, a causalidade?»

Adolfo Bioy Casares (1914-1999)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

a poesia não me interessa #18



Em cada mesa dois. Mulheres e homens entre-
cruzados. Sem tormento. E próximos e nus.
O peito esquartejado. O crânio aberto. O ventre
pela última vez agora a dar à luz.

Do cérebro aos testículos, cada um três malgas rentes.
E o templo de Deus e o estábulo infernal
agora peito a peito no chão da cuba, os dentes
a arreganhar prò Gólgota e a queda original.

O resto nos caixões. Tantos recém-nascidos:
cabelos de mulher, um peito de miúdo,
pernas de homem. De dois amantes prostituídos,
qual vindo de um só ventre, vi que ali estava tudo.

Gottfried Benn, "50 Poemas", Relógio D'Água, 1998

quarta-feira, 14 de abril de 2010

dedicatória #7*

* dedicada a todos os que acreditam que a literatura cura.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Teoria da Conspiração #15 (ou a Saída em caso de exigência)



«Agora a claridade. Detesto a claridade. Aí vem ela. É preciso baixar-me. A claridade convida a sair. É melhor esperar. Ignorar. Fechar os olhos. Assim, isso. Os olhos fechados. Não serei apanhado pela luz. Mas mesmo assim. Sinto uma intensidade. Doí-me. A luz doí-me. Se vês dói. Se não vês também. É uma armadilha. A luz é uma armadilha.»

Gonçalo M. Tavares, "A Colher de Samuel Beckett e outros textos", Campo das Letras, 2002

Nota: caso esteja interessado em saber a proveniência da imagem, guarde a mesma no seu computador mantendo o nome que eu lhe atribuí.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

explicando melhor #2



- Se eu fosse um fama dir-lhe-ia: Regina Pessoa é a autora do desenho. Deve indicar o nome dos autores das imagens que publica, salvo sejam anónimas. Tenha juízo, homem!!!! Mas como sou um cronopio, limito-me a dizer que a imagem faz parte da brilhante obra de animação "História Trágica Com Final Feliz", de Regina Pessoa. Não lho digo a si, que talvez já o saiba, mas a todos os que lêem o blog, para que tenham a oportunidade de a ver (no Youtube) - disse Cronopio.

- Um cronópio ultrapassa o medo de se aproximar demasiado. - disse com esperança o Irmão Karamazov.

domingo, 11 de abril de 2010

alegações finais #2



«Pelo verbo, pela imagem, pelo acto, todas estas abençoadas almas que me fizeram companhia testemunharam a eterna realidade da visão. Será nosso, um dia, o seu mundo quotidiano. De facto já é nosso - simplesmente, estamos demasiado empobrecidos para lhe reivindicar a propriedade.»

Henry Miller, "O Sorriso aos Pés da Escada", Edições Asa, 2000

sábado, 10 de abril de 2010

sexta-feira, 9 de abril de 2010

espécie de oração particular #5



«Estranha é a coragem
que me dás, estrela antiga:

Brilha sozinha na aurora
para a qual nada representas!»

William Carlos Williams, "Antologia Breve", Assírio & Alvim, 1995

quinta-feira, 8 de abril de 2010

o Mal-estar da Civilização #16



«Não quero rebaixar o meu pai, mas tenho de te confessar que uma vida como a sua me daria a morte se tivesse de a viver. Que é que tu julgas que significa viver, para ele? Nada mais que levantar-se de manhã, ler o jornal, tomar uma chávena de café, ir para a oficina, consertar uma mesa, voltar para casa, jantar, dormitar, escutar a telefonia, ir ao w.c., contar uma história, das porcas de preferencia, sair, ir ao cinema, ir para a cama ou para o café, ver um filme, despir uma mulher ou beber uma cerveja, voltar para casa despir-se, ressonar, acordar, tomar uma chavena de café, ler o jornal e ir para o trabalho. O pior ainda não é ele supor que viver seja isto, o pior numa vida destas é ele sentir-se satisfeito.»

Stig Dagerman, "O Vestido Vermelho", Antígona, 1989

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Imediatamente embora pouco a pouco #6



«Adiante, adiante! Vagabundos que encontrava pelas planícies diziam-me que a fronteira não era longe. Eu exortava os meus homens a não pararem, apagava os tons de desalento que se formavam nos seus lábios. Tinham já passado quatro anos desde que eu partira; que longa canseira. A capital, a minha casa, o meu pai tinham-se tornado estranhamente remotos, quase como se não existissem. Vinte meses de silêncio e solidão decorriam agora entre uma aparição e outra dos mensageiros. Traziam-me curiosas cartas amarelecidas pelo tempo, e nelas encontrava nomes esquecidos, modos de dizer que me eram estranhos, sentimentos que não conseguia compreender. Na manhã seguinte, após uma única noite de repouso, enquanto nós retomávamos o caminho, o mensageiro partia na direcção oposta, levando para a cidade as cartas que eu já tinha preparadas havia muito tempo.»

Dino Buzzati, "Os Sete Mensageiros", Cavalo de Ferro, 2005

terça-feira, 6 de abril de 2010

Retrato de Família #13




Clarice L. Karamazov (1920-1977)

«Eu tinha medo da face de Deus, tinha medo de minha nudez final na parede. A beleza, aquela nova ausência de beleza que nada tinha daquilo que eu antes costumava chamar de beleza, me horrorizava.»

segunda-feira, 5 de abril de 2010

a temperatura do corpo #2



«Na mulher sem sexo, lisa e fechada, hermética e toda branca, depilada e sem pregas, os seios ganham uma importância suprema. Nada distrai da tentação dos seios, e isso dá-lhes uma esfericidade suprema. Há-de esgravatar toda a vida o homem neste seios solitários, e dar de beber à sua sede com as suas mãos , tal como se bebe nas fontes mais cristalinas e puras. Nessa mulher sem sexo a elevação dos seios é prodigiosa, radiante, e a feminilidade está neles sem se esbanjar, sem se perder, sem encontrar saída. De facto, se jamais encontrámos esses seios da mulher sem sexo, não vimos os seios em toda a sua apoteose.»

Ramón Gómez de La Serna, "Seios", Edições Antígona, 2000

domingo, 4 de abril de 2010

Corpus Christi Carol #2



«A experiência do Ser Essencial, da semente de vida divina, é a experiência que os pais da Igreja chamam de "O Arquétipo da Síntese". A síntese entre o finito e o infinito, entre o eterno e o tempo, entre o humano e o divino. Este arquétipo é uma imagem estruturante em nosso interior que se manifestou e se manifesta até hoje na historia.
Para a tradição cristã o Cristo é a encarnação desta imagem interior, desta síntese, a qual é, ao mesmo tempo, plenamente humana e plenamente divina, sendo no plenamente humano que o divino se manifesta.»

Jean-Yves Leloup, "Livro das Bem-Aventuranças e do Pai-Nosso: Uma antropologia do desejo", Editora Vozes, 2004

sábado, 3 de abril de 2010

alegações finais #1



«Doze vozes gritavam em fúria e eram todas idênticas. Não havia agora dúvidas sobre o que estava a acontecer às caras dos porcos. Os animais que estavam lá fora olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos e novamente dos porcos para os homens; mas já não era possível dizer quem era quem.»

George Orwell, “Triunfo dos Porcos”, Publicações Europa-América, 2001

sexta-feira, 2 de abril de 2010

a poesia não me interessa #17


A Educação pela Pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, freqüentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

João Cabral de Melo Neto, "A Educação Pela Pedra", Livros Cotovia, 2006

quinta-feira, 1 de abril de 2010

dia de mentiras



©Field,Todd;2006