terça-feira, 12 de novembro de 2013

Não respire... (ou leituras em apneia) #10


«no quarto da Madame:
gosto desta lâmpada, da luz sem esconsos onde te vais despir, primeiro a camisola exacta, depois o colarinho porco da camisa, a cueca azul, o ensopado do sapato, a fofa chuva de Milão pelo cabelo que nunca foi lavado empastou-o sobre a testa, de sujo é encaracolado, baço, e vêem-se-te as costelas de pouco alimentado, degrau a degrau, até aos ossículos ternos das clavículas, aqui: ficas com a nudez suburbana, as pernas arqueadas, o sexo pendente sobre a virilha, os pêlos acamados num púbis inclemente, aqui; mostras na pele os dias em que te não lavaste e o nome variável de múltiplos baptismos, esta luz é deus pai, filho e espírito santo, é deus todo e tolo, é deus polono, aragem que seca pelo seu não soprar, ou por dentro das pessoas deflagra-as na minuciosa contabilidade do divino, aqui: vê-se, não se ama, quando a lembrança do amor me apoquenta, trago os engates para o quarto, fico a olhá-los, fixo as suas formas saturadas, os seus cheiros visíveis como gráficos, depois, dou-lhes dinheiro para me abandonarem não vá a sua presença destruir lembranças ternas, aqui: apaziguo de um desejo que não se apazigua, mato com método o fulgor e a vida, esta luz põe-me só, solidifica-me, do que ela ilumina nada há a dizer»       

Rui Nunes, "O Canto no Ocaso", Edições Rolim, 1984

Pode respirar.

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