quarta-feira, 14 de março de 2012

a temperatura do corpo #12



«Preferi o banho. - Sim, menina, disse em italiano tendo-se ajoelhado n'uma reverencia antes de sair. Corri ao espêlho. Eu era a minha amante! Mas a inteligencia era absolutamente a minha. Extranhava tudo: o atrito das coxas, a curva das pernas, o paladar, o perfume natural da pelle, os cabellos compridamente macios e loiros, os habitos da lingua, a direção dos gestos, as atitudes, tudo diferente e tudo melhor. De repente o corpo começou a desmanchar-se-me como duas metades mal-coladas sempre com os movimentos d'ella intersecionados do meu corpo nú a regressar lentamente de um desaparecimento. E outra vez se diluia pra ser apenas a minha amante toda núa mas com a minha intelligencia. Eu não tinha absolutamente vontade nenhuma sobre os seus gestos quotidianos, sobre os seus habitos. Eu era como que alguem que a disfructásse na intimidade espreitando-a de dentro dos olhos d'ella. Fui inconscientemente abrir um dos guarda-vestidos e vi-a ter todos os gestos que se teem pra se escolher um vestido que vá bem com a disposição do accordar mas o vestido preferido era o meu corpo mólle.»


José de Almada Negreiros, "K4 O Quadrado Azul", Assírio & Alvim, 2000

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